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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2006

mulher das obras

levo a mão ao bolso à procura de trocos, encontro no meio das moedas duas anilhas. páro e olho para mim. reparo em mim inteira e nos novos objectos que passaram a fazer parte dos meus dias. as calças de trabalho, como lhes chamo. de ganga, largas e de bolsos de lado. as botas de montanha que me dão jeito para empurrar os contrapesos que não consigo levantar do chão. mais à mão que as chaves, o passe ou a carteira está sempre o canivete. com que descarno fios eléctricos, aparafuso iodines e reabilito cabos. e já dei por mim no Aki a admirar uma aparafusadora eléctrica daquelas pequeninas, a pensar "que jeito me dava lá nas montagens, em vez do bajolo"... apesar dos comentários engraçados que ouço dos colegas quando dizem "que sexy é uma mulher com um berbequim", acabo por pensar: ok, yin e yang e tal... todos temos lado feminino e masculino... essas coisas todas... sim, tá bem, mas é testosterona a mais por dia, caramba! ai... e os meus sapatinhos laranja largados ab

avessos

gosto de avessos. de interiores. de toques com sentidos subliminares. de contextos e pretextos. de intenções. entrelinhas. gosto como gosto de um doce que se espreme entre a língua e o céu da boca devagar, que se deixa escorrer pelo palato como se fosse uma palavra complexa, cheia de ditongos e arabescos. que se degusta. gosto de suspeitar apenas de um olhar e de poder penetrar nele lentamente, pedindo que me seja dada essa permissão, sem palavras. gosto do interior dos suspiros, onde se alojam os segredos. escondem-se vidas inteiras sussurradas no eco de um gesto. as memórias que o voo de um cabelo transporta. o receio que o brilho da pele encobre. pode ser um silêncio que grita. pode ser um grito que murmura. é nesse avesso das pessoas que se encontra a sua alma. nos pequenos ses. na água. dos olhos e da boca. das mãos. nas dúvidas e fragilidades em que se revela cada intimidade. cada íntimo. onde se desnuda o ser. quando simplesmente se é.

coisas boas

acordar tarde e não sentir que perdi metade do dia. beber a bica da manhã na esplanada. fazer a marginal de vidro escancarado, música bem disposta e dançar nos estofos do carro enquanto o rio brinca com os seus reflexos no meu rosto. deixar o casaco nas costas da cadeira quando vou almoçar. sair do escritório e ainda ver as ruas antigas da minha Lisboa coloridas de luz. o regresso da sensação de criança de que posso ficar a brincar até às tantas. lembrem-me lá: por que raio é que existe o horário de inverno?

dia mundial do teatro

[fotos de T.] era um dia de chuva intensa. estávamos sozinhos. ele tinha ido para o México e tinha pedido que não deixássemos o teatro inactivo. quando voltou, tínhamos conseguido um pequeno apoio da semana da juventude e duas peças preparadas. uma terminava hoje a outra começava hoje, sessão dupla. eu estreava hoje. cheguei cedo ao teatro, com uma colega. tinha a chave, abri as portas e fechei-me lá dentro. ainda o silêncio das pedras. íamos começar a preparar tudo para a mega-produção da noite. faltava arranjar a entrada, com fotos, cartazes. verificar se a loiça estava lavada para a enchente de bicas e imperiais, se a bilheteira estava organizada. faltava dar a vista de olhos aos e-mails. preparar os bastidores e a cabine técnica, para depois a máquina funcionar como deve ser, as trocas de funções serem rápidas e o público não esperar muito durante o intervalo para mudança de cenário. as luzes já estavam alinhadas para servir os dois espectáculos. tínhamos ficado a ensaiar o nosso a

oh life

eles dominam a àrea e nós só nos sentamos e acreditamos... é um bocado como os mecânicos... e ele conseguiu finalmente o que queria. Carrasco sentou-me na cadeira, e, apesar de vir para simplesmente tratar um dente, voltou ao ataque com a coisa de: - mas porque é que não quer extrair os sisos...? - mas eles estão a prejudicar-me a boca em alguma coisa? e ele baixou os olhos, contrariado e murmurou - não... deu a anestesia e, com dois dedos de conversa [ou seja, enfiados na minha boca] lá começou a perfurar. até que estranhamente [porque ele pode ser muita coisa mas não costuma magoar... salvo seja] a broca do senhor me toca num ponto que me faz soltar um trémulo "ehá a huer"... ele escavaca mais um pouco, meio apreensivo e lá me diz a boa-má-nova-depende-do-partido-que-se-toma: - Polegar, você tem uma cárie pequenina no siso, mas é profunda e está a chegar ao nervo... sendo um siso, não vejo necessidade de o mantermos. penso que o melhor será extrairmos... o que é que acha?

separar das aguas

largo o ar que é menos puro que o meu cigarro. num pequeno compasso, fujo para onde ninguém me vê. para um momento que conheci de cor. sei que será agora ou nunca que o reviverei. aquele em que descalça passeava nas tábuas frias, sozinha. não me descalcei nem subi os três degraus mas senti aqueles segundos perfeitos. ouço lá fora o burburinho das vozes dos outros. e lá ao fundo as gargalhadas daqueles que fui. deixo-me ficar ali, no silêncio do entretanto. olho em volta, os assentos expectantes de corpos. a parede alta, que parece não terminar. chegam-me os cheiros das madeiras atrás de mim e parece-me ver uma figura esguia de rolo na mão. a marca no rebordo do degrau por onde descia para me sentar. acaricio o veludo vermelho a medo, quase a pedir-lhe permissão por uma intimidade que agora sinto estranha. mas inevitável. como um velho amante que conhece de cor a pele e os cheiros mas que já não pode possuir. outro vulto me passa, apenas nos olhos, passeando devagar no escuro, em cima d

franjinhas

[ms] porque acordei e cheirava a verão. porque queria abrir a janela e dizer bom dia ao céu azul. porque é quase lua cheia. porque mulher é mulher e muitas vezes mulher é mesmo vaidosa. porque mulher é mulher e quer mimo e sentir-se bonita. porque em menina usava franja. porque queria um reflexo mais descomposto e bem disposto. porque o meu nariz também precisa de fazer a fotossíntese. porque queria manter as raízes fortes e brilhantes e dar um corte nas angústias gastas. porque sim.

music for a found harmonium

music for a found harmonium | penguin cafe orchestra descobri-te quando tropeçaste o meu caminho em papel de jornal. quis-te assim, inteiro. verdadeiro. e não sabia como te chegar. apaixonei-me como criança num campo de girassóis. fui lentamente aproximando-me do teu rosto de luzes [e]ternas, madeiras cansadas. emoldurado pelas vidas em cartaz. programa extenso com letras de teias enredadas por mãos de velha sábia. envolvi-me toda em ti e deixei-te possuír-me. pequenina, enrolada em posição fetal, a luz abraçou-me, aqueceu-me, deu-me a vontade. os braços mexeram-se sem pedir-lhes nada. és assim, generoso, entregas as almas que tragamos sem pensar. e atinge-se na respiração abdominal a posiçao de estrela, que ensinas que nos enfia cá dentro em golfadas as energias deste mundo e do outro. absorvo-te. de repente uma mulher saltou no teu colo. e outra e outra e outra ainda. e seres animados sem linhas dançavam como estrelas à nossa volta. o súbito estertor de ser porque estava no teu colo,

no balanço da melancolia

olho para a agenda preta porque a colega está de novo de férias – prometendo-me beber uma caipirinha por mim numa noite de lua cheia - o que me leva a aperceber-me: um ano , passou-se pouco mais de um ano desde que comecei a trabalhar aqui. podem fazer-se balanços todos os dias, mudamos todos os dias. mas… o Romeu continua aqui - mais pálido, é certo - a fazer-me companhia nas tardes suadas e nas geladas. os patrões continuam ausentes e dispersos, com picos insanos de actividade. continuo sem esperar nada daqui. a janela mostra-me ainda a esquina da casa azul, o extra, a padaria e a rapariga sentada na caixa da electricidade, ainda se adivinha o Tejo, apesar da sua ausência aos olhos, e as gaivotas ainda me garantem que não será uma miragem... e ainda saio demasiado tarde para ir aconchegar os lençóis ao sol no rio. no entanto, e apesar da memória fraca que me deixa guardar pouco, regresso ao “há um ano atrás”... e surge um sabor a sal. pelas mãos vazias de sentido. o corpo solitário

brown eyed blues

subia as escadas do metro, olhos enterrados no livro. um cego cantava, o som embatia nas paredes frias e não encontrava lar. talvez como o cego. "olhos castanhos". a minha avó cantava essa música, nas tardes das papoilas, enquanto engomava ou lavava a loiça. quando o sol entrava a jorros pelas janelas da sala. quando se bebia chá simples, de camomila, bem açucarado. tinha uma voz doce, cristalina, com um vibrato tão característico dos tempos do papel de parede, das saias rodadas, dos serões com discos de vinil e das bolachas ao quilo. fosse essa voz uma cor, só poderia ser branca. como os anjos. senti umas saudades tão fortes que quase não consegui respirar. Teus olhos castanhos De encantos tamanhos São pecados meus São estrelas fulgentes Brilhantes luzentes Caídas dos céus Teus olhos risonhos São mundos, são sonhos São a minha cruz Teus olhos castanhos De encantos tamanhos São raios de luz Olhos azuis são ciúme E nada valem para mim Olhos negros são duas sombras Com uma tr

aqui

estendo os braços está aqui em frente a mim mesmo em frente sei-o nos cigarros acesos nas luzes de halogéneo e no barulho dos carros que passam nas pedras da calçada e nas outras no cheiro do vagabundo e nos saltos da senhora quero. sei todos os dias. percebes? que sei, que estendo e estico os braços até ficarem dormentes que os dedos são pequenos que me deixo ficar a escorrer os pedaços que me definem até que me caia toda ao chão e não tenha mais está aqui, mesmo aqui diz-me para esticar as mãos e depois vira-me as costas.

o voo das borboletas

de repente o "outra vez". o turbilhão. as cores e as palavras. o tremer. o suor. na garganta as rédeas soltas. os dedos agarram com o desespero do sentir do etéreo. o corpo oferece-se sem pedir. podia ser sexo. podia ser um orgasmo. [fotos e montagem de MS]

vozes

repete. já estou cansada. um cigarro, pode ser? não devias fumar enquanto cantas. lixa-te a voz e a respiração. eu sei, que queres. estou nervosa, deixa-me. vá, do início. troco tudo, e se eu falhar? a cantar ainda é pior, nota-se logo... não penses nisso agora. faz. mhmmm, espera, espera. não me lembro do início. disparate, lembras sim. estou com a garganta arranhada. mas que trauma é esse? caramba, acho que ou se tem o dom ou se está calado... és mesmo estúpida, sabias? desde que coloques a voz e entres no tempo ninguém quer saber se ganhaste a eurovisão. bem, ganhar a eurovisão não é sinónimo de cantar bem e... queres começar? oh mas que coisa, estou desconcentrada. isto assim não dá. eu sei que assim não dá, concentra-te. quero fazer isto bem. pois. é que sem fazer parte do nascimento das coisas, levar isto assim tão cru, sem poder experimentar e errar... é difícil. pois é, pois é, é tramado. eu sei que são só dois dias, porque é que estou assim? porque levas isso a sério. eu sei,

hey sugar... take a walk on the wild side

[ms] desertou rua abaixo absorvendo o turbilhão de gentes. a calçada deslizava-lhe nos ténis impactando-lhe o fim de dia nas raízes que ainda a ligavam ao chão. os perfumes e suores de fim de dia misturavam-se-lhe na língua e nos olhos. penetrou nas luzes e nas pessoas, abstendo-se de pensar. Chiado. pessoas, sacos, conversas. fumos, carros de faróis acesos, arrumadores e estrangeiros. as montras desfilavam-lhe nos olhos desatentos de pormenores. de súbito, para lá do seu reflexo envidraçado, da boneca rígida em pose e cores da moda, um pequeno ponto laranja forte de formas redondas. parou. tentou-se. pensou em Carrie de "O sexo e a cidade", pensou em correr rua abaixo para não fazer asneira. 36, ali mesmo, na prateleira, pronto a experimentar. mas nem sequer costuma usar sapatos de salto. o hálito quente da loja e o corropio abriram um labirinto até ao sofá onde se deixou ser vaidosa. demasiado perfeitos. e ficam tão giros com as meias às bolas...