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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2005

no palco nunca estás sozinha

[ms] os fantasmas vivem lá, habitam em cada grão de pó. os fantasmas de todos aqueles que vivem ali, e ali só. que nascem em palavras da alma de algum escritor, brotando tinta escura no papel imaculado. são antigas, as letras, ou nem por isso. não interessa. ali repousam, as letras, as palavras, os espíritos transparentes. um dia são acordados por umas mãos que lhes tocam ao de leve. depois soam as gargalhadas lá fora, ouvem-se falados. ouvem-se a si mesmos a respirar, a sofrer e a sorrir, entre conversas que não conhecem. assim, meio entaramelados, os fantasmas sentam-se na borda do papel, mirando aqueles seres de mãos quentes que acariciam as suas páginas, que seguem com dedos espetados os parágrafos das suas ruas. que evocam as suas letras, a sua tinta. vêem esses seres de olhos sérios, olhando-os dali sem os verem, fixando com dúvidas e ar confuso as frases que disseram. aos poucos as expressões mudam, parecem compreender. rabiscam novas letras ao lado das suas. que revelam sentire

morte no parque

desorientou-se na outra turba estranha de gente, onde rostos conhecidos lhe transmitiam apenas a dor da transparência. o caminho era o mesmo mas sentia-se outra desconhecida. media os passos na alcatifa e os cheiros possuíam-lhe os sentidos. passou pelo seu rosto e não se viu. há dias assim, pensou. em que se confirmam apenas as feridas por cicatrizar. no veludo vermelho deslizaram-lhe as curvas de arcos de pedra gravados na pele. ainda gravados. sentia-lhes de perto o toque, a respiração. das pedras, sim, das pedras cinzentas frias imóveis que respiravam nela. como respirava aquela cara que a mirara de olhos cerrados no sono eterno de duas dimensões. e um outro corpo nu de rosas no colo e pescoço atirado para trás. e luas roxas e fios vermelhos. e canos entupidos e calças arregaçadas e a capa preta num sofá bafiento. indelével, contudo, também a transparência com que se sentava ali. não disse mais do que o necessário, não abraçou ninguém que não quisesse abraçar. ficou por sorrir tudo

desrespirado

a multidão condensava-se num vapor pegajoso e barulhento. luzes demasiado brancas, neons e cartazes. consumia-se em cada passa de cigarro para se tornar mais nítida depois do fumo se misturar na respiração do ar condicionado. duas amigas em gargalhadas, um grupinho discutia trabalhos e teorias, com cuidado para não sujar a gravata com o molho da maionese, se ela fosse lá ter agora não estava com essa em cima, ela tem de se desenrascar, onde compraste esse casaco?, o caderno em cima da mesa. alheia de sons e vozes e suspirares, observa apenas, absorta, ouve sem fixar. alarme de loja dispara sozinho. a sério? mas achas que. fui ao centro comercial pipipipipipipi. o pensar misturava-se com os sons sem nexo e sem nexo continuava o pensamento. bocejou. desligou. o filme começa daqui a pouco

no vidro

[ms] sentou-se na cama asfixiada com o ar tão leve que quase não o sentia entrar dentro de si. levantou-se sem contar os passos, e o chão deixava-se pisar sem lhe arrefecer os pés. sem uma brisa que lhe arrepiasse a pele fina das costas. o inverno berrava lá fora, mas não, nem um sopro. foi até à janela e encostou a testa no vidro azul escuro de céu. olhou fixamente as lágrimas que choravam no vidro. escorriam sem caminho definido porque o vento contrariava a gravidade em andamentos musicais uivados, assobiados, fazendo dançar a água. nem na testa sentiu frio. encostou a bochecha, depois o peito que ondulava pelos botões desapertados de uma camisa velha, ainda arquejante na busca do ar fino. nem no peito sentiu o vidro. mas chovia lá fora. quis tocar no vidro choroso. estendeu os dedos e acompanhou dormentemente o descer descompassado de uma gota gorda, que logo se misturou com outra. e logo lhe caiu no dedo. não percebeu porquê, se estava do lado de cá e a mão... atravessara o vidro.

espiral

agarro-me com força ao que é bom. abraço com os meus dedos pequenos, e a minha boca procura o ar calmo e fresco de uma manhã de sol. mas já não me larga o pânico da perda. perder até o discernimento para conseguir sorrir. aquele sorriso que sempre foi tão constante que se tornou um peso e um preço, para aos poucos regressar à sua natureza. porque sempre fui de sorrir. tempos de espiral descendente. não quero cair outra vez. não assim. não tenho mais braços. não tenho mais músculos. não. sim. o corpo pede descanso. porque suportou dores de alma, está magoado, fraco, enlameado. o coração voltou a saltar, de vez em quando, à minha revelia. a assustar-me como já me assustou. não quero mais. quero deitar a cabeça na almofada e adormecer-me. descansar-me, serenar-me. quero enrolar-me no ar quente e deitar-me com o sossego. só por um bocadinho.

crash

só queria dizer ao senhor condutor que esta madrugada, na 2ª circular, resolveu vir contra o meu carro, fazer-me andar em peões e espetar-me contra um rail, enquanto fugia, que os polícias foram incansáveis e querem tanto vingança como eu. assim, enquanto o meu jipinho fica à espera de diagnóstico ou mesmo de entrada no ferro-velho, o senhor ficará sem carta, e, pelo que depender de mim, vai pagar bem caro o facto de nem sequer ter olhado para trás, enquanto parava o A3 dele (que também não ficou em bom estado)depois de uma curva, bem escondido, trancava as portinhas e ia a pé (cambaleante, decerto) para casa. senhor condutor: estamos bem, obrigada, por acaso não morremos. a festa de anos da minha irmã, que é assombrada desde a morte da minha avó, vai correr da melhor forma. e não se preocupe, eu arranjo maneira de ir trabalhar todos os dias. tenha um soninho descansado.

polegada #4

|quando pensamos que as coisas não podem ficar pior| os carregadores não apareceram hoje. o patrão tinha-os avisado mas eles não tinham sido avisados. eu e a minha colega (não a cabajona, a outra, do som, que também é franzina) tivemos de montar tudo sozinhas. os actores foram beber cafés ou para os camarins. um deles pensava que estavam a gozar com ele quando tinham dito que os carregadores não tinham vindo. só se aperceberam da calamidade quando chegaram à sala, 5 minutos antes da hora do espectáculo, em vez da meia hora regulamentar. aí ajudaram. se todos trabalhassem na montagem todos os dias, ganhávamos mais porque não se pagava aos carregadores. e eu e a minha colega podíamos chegar uma hora mais tarde, e eles só tinham de chegar meia hora mais cedo. o espectáculo começou com 25 minutos de atraso. turmas barulhentas da Baixa da Banheira. ficaram histéricas quando um ex-morango apareceu à porta para a visita guiada. como ao puxar o porta-paletes com parte do material, de manhã, ía

polegada #3

|tentativa de pendurar um cartaz a quase 2m de altura| duas mulheres. uma cabajona, outra franzinita. uma parede fina, sem ligação ao tecto, com algumas vigas. fio de nylon. escadote do séc. XVII. um cartaz. duas galinhas doutoras. cabajona: eu subo ao escadote do lado de cá. sobes para cima dos cacifos por detrás da parede e esperas que eu te mande o fio de nylon, prendes às vigas. franzina olha os cacifos, são mais altos que ela. um banco do séc. XVII oferece pouca sustentação. sobe ao banco e continua a não chegar com mais que os braços aos cacifos. não tem força para se elevar só com bíceps e tríceps e restantes íceps. em frente aos cacifos está outra parede do séc XVII. que se lixe o património. pata na parede e trata de escalar quase paralela ao chão até se conseguir içar para cima dos cacifos. espera. espera. espera. cabajona: polegaaaaaar. não consigo subir ao escadote. tenho medo. vem tu para aqui e eu vou para aí. franzina olha o banco lá em baixo. suspira. pata na parede. ou

alvorada

vai passar a ser às 6:30 da manhã em 90% da minha vida laboral. vai ser não só a A8 e a Calçada de Carriche como também atravessar a 2ª circular e entrar em Belém. vai ser montagem de espectáculos diária, quatro dias por semana. duas horas a carregar ferros, contrapesos, cadeiras, placas de madeira. juntar tudo num cenário. ir para a bilheteira e aturar as senhoras do monumento com a mania que são gralhas, as professoras nervosas, os adolescentes com a mania que são engraçados, tarados, destruidores de património e mais barulhentos que galinhas com gripe. depois das matemáticas (se entretanto os actores não se tiverem deixado dormir), começa o espectáculo. rezar para que a colega já faça ideia de onde fica o botão do play. esperar para depois desmontar tudo e voltar a encaixar num cubículo com um metro de largo por metro e meio de fundo. voltar para o escritório. de preferência de transportes públicos, já depois da hora de almoço. comer uma sandes e ir para a frente do computador. isto

mulheres

acordar cedo e entrar no carro com as irmâs. o sol a entrar pelos olhos, as vidas postas em dia, quase sem olhar a estrada porque era a caçula que conduzia. a chuva fez o ritmo no tablier das palavras que escorriam de tema em tema. perdermo-nos e chegarmos, finalmente, a uma terra perdida nos montes de Leiria. entrar na enorme loja e voltar em passos pequenos à infância. os tules, as organzas, sedas, e laçarotes. coisas muito foleiras, coisas muito bonitas. de repente ela já não era a figura que lhe conhecia. estava ali, longa, esguia, comprida, flutuando no branco da seda selvagem. entre gargalhadas, caretas, dúvidas e muitos arrepios de frio, os alfinetes entranhavam no tecido, dando forma ao desenho das palavras. palavras que saíam tremidas. do frio? aos poucos a confiança impôs-se, e meti-lhe os dedos no cabelo. também na minha cabeça desenhei linhas e contornos, que fui improvisando em concordância com o que havia à mão. já tenho a paleta de cores com que lhe vou salpicar o rosto

magusto

queríamos uma coisa típica. castanhas e água pé. acabaram por ser castanhas de um bolo-rei (!), a água pé transformou-se em triestino, hot chocolate, chá de limão e um mocaccino ou algo com nomes italiano-americanizados do género. estavam quentes e souberam bem. souberam a conversa comprida, mãos quentes e luz de velas. porque o chocolate é mais doce bebido a colheres de chá :)

dois teclados #2

Regressaste numa manhã de nevoeiro. Parece pateta mas foi verdade, era inverno e era manhã e estava frio e chegaste leve e sorridente como te recordava, voltaste a ser a boneca apaixonada por quem todos os homens do mundo se deixavam aprisionar se te vissem sorrir. Quando o peso saiu dos teus ombros voltaste a pular sobre as nuvens e sorriste e voltaste a ser feliz. E lembrei-me daquele primeiro instante, um café roubado ao teu horário de trabalho, um cafézinho roubado ao fim de tarde num jardim da cidade, e aqueles primeiros sorrisos trocados, o teu rosto era mesmo mágico, soube logo ali. |NC| És tramado, tu. Nessa cara de menino sacana, de olhos inteligentes, a percorrerem-me por dentro como se não fosse boa educação perguntar antes de entrar. Aliás, fazes tudo sem perguntar, não é? Assim me raptaste pela primeira vez do bulício das contabilidades de fim de data de entrega de IRS. Não se faz. Mas tu fazes tão bem… “Estou cá fora. Desce que preciso de cafeína contigo”. Senti-me trapa

bom dia ou... tem de ser

expiro forte no ar frio, os passos contados pela calçada branca. o dia brilha-me no cabelo e o caminho prolonga-se até à chegada. subo dois lanços de escadas e cumprimento a menina da recepção com um sorriso, ao que ela responde com outro, inclinando-se para a gaveta de onde tira uma chapa para a máquina do café. pago e sigo. passo as portas de onde já se entrevêem pessoas a circular entre computadores acesos, fundos de écrãs com criancinhas, dossiers e papeladas. quadros nas paredes e gráficos. vou ao chamado bar, onde está a máquina do café, ligo-a. abro a porta do meu escritório e cumprimento os actores nas paredes. ligo os computadores, pouso a mochila e dispo o casaco e o cachecol cor de rosa onde afundei o nariz no caminho. volto à sala do bar e meto a chapinha na máquina. a bica é mais barata e apesar de a máquina ser muito antiga, o café sai espumoso, quente, forte. volto com o copinho de plástico a fumegar, pouso-o no postal de um filme que serve de base, despejo o açúcar e ac

agruras da vida #2

a maré baixou e deixou expostas todas as fragilidades ao ar, a apodrecer. basicamente, 6 meses de trabalho deitados fora. apesar de todos os conselhos, nós, as práticas (que ficaram por terras lusas), fomos acusadas de negativas pela garganeirice dos que achavam que do outro lado do Atlântico se resolveria por magia tudo o que devia ter ficado bem explícito ainda do lado de cá (e que não dependia de nós, as práticas). parceiros que deram a facada nas costas. burocracias intransponíveis. promessas de intermediários só se revelaram ainda mais ocas do que já pareciam quando já era ou vai ou racha. acharam que era de ir na mesma. duas semanas de trabalho intensivo aqui das práticas, e foram. partir às cegas é giro, quando se é turista. depois de tudo isto, voltarão, antes de tempo, com o rabo entre as pernas, de feitios intratáveis, e com a certeza das frases que já vamos ouvindo há uns tempos: "porque é que não fizeste/levaste/trouxeste/ligaste?" (a culpa é sempre de outros), &q

bocas

desde miúda que vou ao dentista. no primeiro dia escondi-me atrás da cadeira a pedir por favor que não me arrancassem dentes. acabou por ser necessário, mas até que nem foi muito mau. o doutor, com nome arraçado de Caramelo, era bom. arrancaram-me dentes de leite, dentes definitivos, acho que uns 10 dentes no total. porque, literalmente, I could'nt keep my teeth inside my mouth. tinha daqueles espaços entre os dois dentes da frente, que prontamente foram postos no sítio com um aparelho que tinha uma Tartaruga Ninja no céu da boca. aos 14 anos estava pronta. depois de todos estes arranjos, o doutor Caramelo foi para os States fazer um masters em implantologia, e só o via e aos seus mui calmantes olhos azuis de seis em seis meses, altura de limpezas simples. antes de partir fez-me um molde da obra acabada para mostrar aos seus alunos e colegas. e suspeito que para ter um pouco de mim sempre por perto. ora bem, regressado dos States, veio megalómano. o consultório não lhe chegava. res

agruras da vida

andei a correr passeio fora atrás de uma nota de 5 euros que o querido vento amigo queria levar para longe de mim. desesperada gritava-lhe, como se me pudesse ouvir, que não me deixasse. agora desligo as máquinas e ponho a mochila às costas. vou ao dentista largar umas valentes centenas de euros, que ele não faz por menos, e ainda por cima tenta não passar recibo. (suspiro) ai...

girando em cima da mesa

"[...] A vida como uma moeda. Escolhes uma face ou uma face te há-de escolher. Avalia as possibilidades. [...] O problema das montanhas é que só conseguimos ver o que está do outro lado quando lá chegamos. É fácil dizer hoje que não mudaríamos nada, ou que faríamos tudo diferente. É fácil porque não adianta". A casa quieta, Rodigo Guedes de Carvalho às vezes é complicado pensarmos em como só vemos a solução depois de já não haver problema. depois de já não se poder fazer nada. o meu maior problema. a minha maior luta. tentar fazer tudo para que as coisas não percam o controlo. não nos percam. há muitos anos, a noite era de vigília silenciosa cansada ao teu quarto. os fantasmas cirandavam e eu não queria que te perturbassem os sonhos de menina. ficava de olhos abertos na escuridão até a escuridão me abraçar por desgaste. acredita, não aguentava mais do que o tempo que os olhos se mantinham alerta. mas tinha a sensação de que nada te tocava. que te guardava. hoje as portas do t

onde andas?

loira, tonta, de olhos grandes. onde andam eles? os olhos? porque te dizes menos? porque te dizes longe? sabes, maninha querida, que estás no casulo do meu coração? e enquanto as estações passam, sinto-te quase borboleta... quase a voar. não é para fora do meu coração. a esvoaçar, com as outras, dentro de mim. minha pequenina, tonta, de olhos grandes e caracóis de sol. põe pimenta nessa língua de pensares assim. de não pensares também em tudo o que é nosso e bonito. de que tu fazes parte. esses pesos que carregas, usa-os como apenas raízes ao solo. para poderes florescer. com a água dos dias bons. quero-te perto, maninha linda. um beijo

tricotando...

roubei este excerto descaradamente de uma conversa de msn q tive há uns minutos com a B... foi alterado por forma a preservar o anonimato de quem tem de ser anonimizado... B says: Linda, fiz à hora de almoço a transferencia para ti (dos nossos mui recheados auferimentos do SAX)  Polegar says: eheheheh boaaaaa  Polegar says: vou comeeeeer!!!  Polegar says: LOL  B  says: e fiz tb para o (outro actor do espectáculo que é o tal totó insuportável), adivinha de quem é a conta?  Polegar says: da pipipopótarecaxenica  B  says: LOLOLOLOLOL  B  says: (MUITO ALTO)  Polegar says: matarruana, aquela  Polegar says: como é q se chama?  Polegar says: calhau? bulldozer?  B says: DOUTORA xxx....  Polegar says: ah, pronto, está bem...  Polegar says: tinha ideia que ela tinha outro nome qq  B  says: sim, acho que é calhau  Polegar says: ora lá está  Polegar says: sabia que era qq coisa geológica, mas não era xxx Rocha Sedimentar  B  says: lol  B 

olha!

My blog is worth $14,113.50 . How much is your blog worth? quem quer comprar à polegarzinha, o blog na netzinha?

polegada #2

ontem, a caminho da cervejaria Trindade, passei obrigatoriamente pela sex shop ali do Cauteleiro. olho sempre para a montra. confesso, acho graça ao imaginar senhoras a tentar reacender a paixão em casa, vestindo aquelas rendas com a banha a sair por entre os muitos buracos da fatiota. e a cara de surpresa de um qualquer alguém que acha que engatou uma miúda certinha para uma noite de simples engalfinhamento e de repente a menina angelical de artigos duvidosos a gritar "say my name, bitch". ou até o rapazola de livro na mão, com a namorada deitada na cama à espera, e ele "ora... 5 centímetros para nor-noroeste do ísquio, isso fica por... aqui!" "Ah! Oh sim!!... bem, na vista de olhos pela dita montra, reparo num livro à venda. "Arte vs Sexo", do Miguel Ângelo. sim, o dos Delfins. eu não sei quanto a vocês, mas... haverá coisa mais quebra-tesão do que o Miguel Ângelo?

elevador #2

entro. o condutor acaba o cigarro e sobe atrás de mim. sacudo a chuva do cabelo, pago e pico o bilhete. fico mesmo à porta. perto, tão perto do condutor sisudo que quase sinto as pontas dos seus bigodes enormes, retorcidos, na minha bochecha. observo calmamente o caminho, sempre o mesmo, em carris. mas cada momento diferente. a luz. gente, sempre gente, mas sempre pessoas diferentes. um grupo daqueles de gente pequenina de olhos bem abertos e bibes coloridos desafia o passeio íngreme com as suas pernas curtinhas. aos pares, de mão dada. olho em frente. quase a chegar. o senhor dos bigodes, o sisudo, levanta a cabeça, e de repente os seus bigodes saltitam e ele acena lá para cima. espreito. outro grupo dessa gente pequenina de bibes às cores está de caras redondas encaixadas no gradeamento ao cimo da calçada. e agitam as mãozinhas a dizer adeus ao elevador. estico o braço e sorrio-lhes com o sorriso parvo de "gente grande". ouço um "adeeeeeuuus" de vozes fininhas de

pao por deeeeus

santa terrinha, 9 da manhã. tudo calmo. a luz entra preguiçosa por entre as portadas, o mundo parado debaixo do edredon azul, no borralho quente do corpo descansado, imerso nos sonhos sem sonhos de que a cabeça precisa, e que dure muitas horas para recuperar. blém blém blém tocam à sineta do portão (o meu pai gosta de coisas rústicas...) e um coro de vozes novinhas novinhas a estrear grita: - pão por deeeeeeeus silêncio. dentro do edredon o primeiro movimento. lento, atabalhoado, mas irritado. rezando para que este ano haja, de facto, alguém em casa, que vá à porta antes de os miúdos voltarem a to... blém blém blém - pão por deeeeeeeus não, outra vez não. este feriado é maldito. é sim senhor. cabeça para debaixo da almofada, edredon até ao nariz. trrrriiiiiim trrrrimmmm - pão por deeeeeeeus mudaram de estratégia. foram ao outro portão, que tem campainha normal. (sim, é rústico, o badalo, mas não se ouve na casa toda). oh não. sei perfeitamente o que vai acontecer. como ninguém aparece