desejando estar noutro qualquer sítio, vendo as árvores e os candeeiros a fugirem dos olhos nervosos.
as mãos fechadas, estáticas, cravadas em tensão nos estofos do carro e as pernas completamente rígidas carregavam num travão invisível, na desesperança de ver chegar uma curva cheia de poças de água e temendo o descontrole de uma coisa tão falível como uma caixa de metal com rodas conduzida por um louco furioso.
as horas escorregavam nos vidros de forma dolorosa e nem a música cantada alto - desavergonhada porque desesperadamente - espantava os medos obscuros e as visões de uma noite escura em que o som da chuva soou demasiado alto e só parou num estrondo ensurdecedor.
o homem ao volante, de cenho franzido e movimentos incertos, tomava agora - tenho a certeza - contornos quase monstruosos, de ser mutante, umas horas atrás pessoa normal, agora quasi-homicida.
às vezes não percebo as pessoas, juro que não percebo. o desprendimento com que se toma responsabilidade sobre a vida dos outros. numa boleia ou numa viagem sozinho, em que se cruzam centenas de vidas à nossa volta.
a possibilidade de se curtir uma viagem de paisagens nocturnas de cortar a respiração, dignas de uma paragem para um cigarro e contemplação, completamente esmagada por um pé num pedal em nome de sabe-se lá que alívio de uma estranha frustração.
hesitava-se entre o não se lhe dizer nada para não o distrair das curvas demasiado apertadas e o falar com ele a ver se por estar na conversa abrandava. corria-se o risco, no entanto, de ele, entusiasmado com a conversa, tirar as mãos do volante para esbracejar as palavras...
demasiado tétrico para ser irónico foram as incontáveis vezes que se falou do meu acidente, em que não tive culpa nenhuma e ia devagarinho [como é que se admite esses malucos que aí andam, pá?!], e de fulano e sicrano terem morrido ou ficado com uma perna enfiada na testa por excesso de velocidade. porque o tom que circulava era o do "coitados, realmente ele há gente que não pensa... mas isso só acontece aos outros e eu posso continuar nesta desculpa esfarrapada de estrada a 150 à hora que nada me acontecerá, porque sou eu, o Rei, o Senhor do Asfalto e conduzo muita bem - olham'esta beleza a curvar e a entrar em contramão no cruzamento [e ele chateado com o cruzamento, porque não devia estar ali e devia ser mais largo], olham'esta qualidade de reacção a acelerar para ultrapassar em cima do traço contínuo [porque a fila lá à frente sempre é lá à frente], olham'estes travões que nem preciso de manter uma distância de segurança de 50 centímetros [e o lembrar-se de lá meter o pé, senhor?]. eu tenho um carro que inexplicavelmente se mantém em cima das quatro rodas mesmo quando faço as maiores barbaridades - que não são barbaridades, porque sou eu que as faço, hem?".
naquele limbo do temer pela vida e do não ter pago a viagem para me por com exigências [como faço num táxi] ou ter confiança suficiente com o senhor para lhe mandar um berro e dizer-lhe que ou ia devagar ou levava um pontapé na boca [note-se que seria em palavras menos simpáticas, mais escatológicas e anatómicas e de vogais bem abertas], mantinha-me em choque catártico, a tentar lembrar-me de respirar, a tentar não reparar de cada vez que o pobre carrinho, tão inteligente, coitadinho, apitava a avisar que se ia em excesso de velocidade [coisa frequente que se tornou ensurdecedora. mas o triste apito acabava por desistir, cheguei a pensar que de afonia], a tentar ignorar a minha cabeça feita chocalho, as minhas costas num monte de ossos sem ordem. e a pensar na desgraça que seria se o senhor em vez do carro dele estivesse a conduzir o meu falecido... e a fazer, bastaria, um terço do que estava a fazer com o dele... é que nem tinha andado 100 metros.
cheguei ao ponto de, no pânico, antever a minha morte já ali naquela curva, sendo o fantástico tecto de abrir - que me mostrava de vez em quando uma lua cheia maravilhosa - o meu voraz assassino, na pessoa de estilhaços cravados no meu pescoço...
...
... de repente, alguém se lembra que se esqueceu de uma mala. ora portanto... uma hora de tortura feita, agora mais uma para ir buscar a mala e outra para voltar ao ponto onde estávamos, mais umas duas e tal até chegar o momento em que sentiria [se realmente conseguíssemos lá chegar] o chão seguro debaixo dos meus pés. acho que nesse momento os meus olhos caíram das órbitas e os meus dedos, já dormentes, perderam o fôlego.
ainda em busca do meu carro novo-semi-novo-usado-sem-estar-muito-ao-menos-com-as-peças-todas-fashavor, dou comigo a pôr de parte a cor, o design e o consumo e a imprimir as páginas do testes de colisão, a analisar as velocidades máximas que atingem, como serão os pneus, se têm tecto de abrir... e a fazer uma lista de pessoas que nunca deixarei que peguem nele, nem para o tirar do estacionamento...
as mãos fechadas, estáticas, cravadas em tensão nos estofos do carro e as pernas completamente rígidas carregavam num travão invisível, na desesperança de ver chegar uma curva cheia de poças de água e temendo o descontrole de uma coisa tão falível como uma caixa de metal com rodas conduzida por um louco furioso.
as horas escorregavam nos vidros de forma dolorosa e nem a música cantada alto - desavergonhada porque desesperadamente - espantava os medos obscuros e as visões de uma noite escura em que o som da chuva soou demasiado alto e só parou num estrondo ensurdecedor.
o homem ao volante, de cenho franzido e movimentos incertos, tomava agora - tenho a certeza - contornos quase monstruosos, de ser mutante, umas horas atrás pessoa normal, agora quasi-homicida.
às vezes não percebo as pessoas, juro que não percebo. o desprendimento com que se toma responsabilidade sobre a vida dos outros. numa boleia ou numa viagem sozinho, em que se cruzam centenas de vidas à nossa volta.
a possibilidade de se curtir uma viagem de paisagens nocturnas de cortar a respiração, dignas de uma paragem para um cigarro e contemplação, completamente esmagada por um pé num pedal em nome de sabe-se lá que alívio de uma estranha frustração.
hesitava-se entre o não se lhe dizer nada para não o distrair das curvas demasiado apertadas e o falar com ele a ver se por estar na conversa abrandava. corria-se o risco, no entanto, de ele, entusiasmado com a conversa, tirar as mãos do volante para esbracejar as palavras...
demasiado tétrico para ser irónico foram as incontáveis vezes que se falou do meu acidente, em que não tive culpa nenhuma e ia devagarinho [como é que se admite esses malucos que aí andam, pá?!], e de fulano e sicrano terem morrido ou ficado com uma perna enfiada na testa por excesso de velocidade. porque o tom que circulava era o do "coitados, realmente ele há gente que não pensa... mas isso só acontece aos outros e eu posso continuar nesta desculpa esfarrapada de estrada a 150 à hora que nada me acontecerá, porque sou eu, o Rei, o Senhor do Asfalto e conduzo muita bem - olham'esta beleza a curvar e a entrar em contramão no cruzamento [e ele chateado com o cruzamento, porque não devia estar ali e devia ser mais largo], olham'esta qualidade de reacção a acelerar para ultrapassar em cima do traço contínuo [porque a fila lá à frente sempre é lá à frente], olham'estes travões que nem preciso de manter uma distância de segurança de 50 centímetros [e o lembrar-se de lá meter o pé, senhor?]. eu tenho um carro que inexplicavelmente se mantém em cima das quatro rodas mesmo quando faço as maiores barbaridades - que não são barbaridades, porque sou eu que as faço, hem?".
naquele limbo do temer pela vida e do não ter pago a viagem para me por com exigências [como faço num táxi] ou ter confiança suficiente com o senhor para lhe mandar um berro e dizer-lhe que ou ia devagar ou levava um pontapé na boca [note-se que seria em palavras menos simpáticas, mais escatológicas e anatómicas e de vogais bem abertas], mantinha-me em choque catártico, a tentar lembrar-me de respirar, a tentar não reparar de cada vez que o pobre carrinho, tão inteligente, coitadinho, apitava a avisar que se ia em excesso de velocidade [coisa frequente que se tornou ensurdecedora. mas o triste apito acabava por desistir, cheguei a pensar que de afonia], a tentar ignorar a minha cabeça feita chocalho, as minhas costas num monte de ossos sem ordem. e a pensar na desgraça que seria se o senhor em vez do carro dele estivesse a conduzir o meu falecido... e a fazer, bastaria, um terço do que estava a fazer com o dele... é que nem tinha andado 100 metros.
cheguei ao ponto de, no pânico, antever a minha morte já ali naquela curva, sendo o fantástico tecto de abrir - que me mostrava de vez em quando uma lua cheia maravilhosa - o meu voraz assassino, na pessoa de estilhaços cravados no meu pescoço...
...
... de repente, alguém se lembra que se esqueceu de uma mala. ora portanto... uma hora de tortura feita, agora mais uma para ir buscar a mala e outra para voltar ao ponto onde estávamos, mais umas duas e tal até chegar o momento em que sentiria [se realmente conseguíssemos lá chegar] o chão seguro debaixo dos meus pés. acho que nesse momento os meus olhos caíram das órbitas e os meus dedos, já dormentes, perderam o fôlego.
ainda em busca do meu carro novo-semi-novo-usado-sem-estar-muito-ao-menos-com-as-peças-todas-fashavor, dou comigo a pôr de parte a cor, o design e o consumo e a imprimir as páginas do testes de colisão, a analisar as velocidades máximas que atingem, como serão os pneus, se têm tecto de abrir... e a fazer uma lista de pessoas que nunca deixarei que peguem nele, nem para o tirar do estacionamento...
Comentários
tubarão: ai eu acho q se passasse por uma dessas tinham de me arrancar do assento com uma espátula...
Comprei um carro um nadinha mais potente que o anterior porque custava subir a CREL a 80 à hora e com os camiões a passarem rente.
Agora posso subir à vontade em 5ª e a abrir mas não o faço porque não é meu hábito fazê-lo. Basta conduzir a 120/130 para chegar a casa inteiro. É que a 80 à hora é um perigo assim como é a 180.
Todos amigos e colegas a quem disse que comprei o maquinão, perguntam, "Então? quanto é que já deste naquilo?" Ficam incrédulos quando respondo, já dei 150 a caminho do Alentejo mas no dia a dia ando a 120. Nunca mais.
Otário é a resposta que tenho ouvido em troca de tamanha afronta.
Ser Tuga é assim mesmo.
otários? viveremos mais tempo otários, ou levaremos antes de tempo com um otário em cima...?