abre os olhos ainda não acordou o mundo. na janela ainda sem cortina passam pequenos raios de luz, tímidos, dando-lhe os solitários bons dias. a cama demasiado grande sem o outro corpo que a escolheu, revolvida da noite sem sono de borboletas na barriga, as paredes ainda largando o cheiro da tinta pintada a dois há poucos dias. larga os lençóis e a preguiça hesitante. ele já terá acordado? a água escorre fervente pelo corpo que teima em manter-se arrepiado e tenso. perde mais tempo no creme com o cheiro do perfume que a pele absorve, sedenta. umas calças de ganga, um casaquinho e rabo de cavalo. acende as luzes da cozinha e engole sem vontade uma torrada.
o telefone toca pela primeira vez. não é ele, hoje recusa-se a falar com ela. a amiga está lá em baixo à espera. desce com a carteira e telemóvel no bolso do casaco e chaves atrapalhadas na mão. a conversa amena distrai-a e as revistas no cabeleireiro também. ele ter-se-á lembrado da flor para a lapela ou irá levar a teima dele avante? o ferro queima-lhe ao de leve uma orelha e o cheiro do spray fixante para as ondas no cabelo dá-lhe alguma náusea. quando levanta a cabeça e se mira ao espelho, ainda com a roupa do dia a dia, não se percepciona.
regressa e o telefone toca de novo, abre a porta e entra a irmã de mala prateada na mão, recheada de pincéis e frascos brilhantes. senta-se à janela e vai dando dicas à amiga para escolher uns cds tentando não se mexer. será que ele gosta deste castanho nos olhos? atende mais meia dúzia de telefonemas, explica caminhos e horários. depois de meia hora de risos calmos e algumas caretas, o espelho volta a sorrir-lhe, ainda atordoado.
vai ao quarto que será escritório mas onde por agora a única coisa que o tem é um cabide com um vestido branco pendurado no puxador da janela. as mãos tremem-lhe ao subir as meias de vidro pelas pernas. não serão demais? aos dedos escapa o caminho do fecho do soutien que conhecem de cor. o verniz já secou, de certeza? o saiote que já ensaiou parece-lhe maior e a saia demasiado apertada. o top não tem aqui uma linha solta? enrola-se na pequena estola de plumas que parece não assentar nos ombros como da última vez, no atelier da costureira. a irmã dele telefona à gargalhada e diz que ele nem dormiu. será verdade? a amiga tem de lhe calçar as sandálias e a irmã ajeita-lhe os caracóis soltos perto do ganchinho.
dobra a roupa e faz a cama. será que ele já chegou? estará à minha espera? novo telefonema. parece que ele já está a roer os cotovelos, à falta de unhas. coitadinho. mas ele estava tão calmo ontem. mete numa malinha o baton e perfuma-se. pergunta três vezes se cheira bem. que horas são?
de cabide na mão sem se saber ao lado do armário, estaca em frente ao espelho. uma última vez. e rodopia. larga uma gargalhada e um sorriso ansioso. já está.
Comentários
Acaso é real a felicidade suspirante que hoje sinto, enfeitada de flores e branco, tão menina, diz o espelho, tão mulher, como me sinto, perdendo-me em ti, nas palavras murmuradas a dois, no suave, quase parado, passar dos dias...
Hoje deu-me para isto. O teu texto está tão lindo, que me apeteceu dizer qualquer coisa. A noiva já viu?
Beijinhos
Os momentos em que a noiva espera... e quem é a noiva?
Um beijo
Daniel
colher: de facto...
alien: :)
querido daniel: os momentos do antes. quando ainda ninguém sabe, quando ainda ninguém vê. os momentos de solidão. a noiva foi a minha irmã mais velha. beijo