caminhava ininterruptamente há muito tempo, não sabia quanto. caminhava entre palavras por dizer, entaladas no beco sem saída que o grito rasga. caminhava entre grãos de areia, minúsculos, que lhe massajavam os pés para depois lhos ferir em chagas sangrentas. sentou-se sem o suspiro do alívio. os passos seguir-se-iam, de novo.
não lhe interessou olhar em volta. não lhe interessou os cheiros nem os rostos.
pediu uma água e esperou. quando levou os dedos ao copo um reflexo no tampo de vidro riscado prendeu-lhe os olhos. um qualquer desassossego no cabelo comprido. um qualquer esgar perdido na pele sem sinais. prendeu-lhe os olhos.
permaneceu em sombria atenção ao reflexo no vidro riscado. com medo, talvez, de levantar os olhos para se deparar com uma figura diferente daquela ali gravada a duas dimensões, recortada pela luz demasiado forte do exterior.
os olhos pareciam límpidos à primeira impressão, mas algo se escondia por detrás da serenidade, demasiado transparente, demasiado simples. um travo morno subiu-lhe à lingua, abafou-lhe a frescura da água enquanto fixava os pormenores do cabelo preso numa trança comprida e escura, emoldurando o pescoço, o nariz espevitado, as mãos pousadas ao lado de um copo com um líquido amarelado. a roupa sem qualquer desígnio de tribo urbana ou moda. não marcava posição ou mania. vestida para agasalhar. vestida para despir.
estás do lado errado da avenida. sei-o nesses dedos inertes que de vez em quando fechas num punho pequeno, nesse olhar suavizado para não dizeres nada. há quanto tempo estás aí? vês-me? sim, vês, mas não me viste porque não olhaste. como eu não olho para ti mas para o teu reflexo. a que cheiras quando te deitas? ao creme que passas na testa em gestos desprendidos ou ao suor de um dia comprido? dormes nua? ouves música ou preferes que o silêncio não te tolde os pensamentos para que entres nos sonhos sem enganos? quanto tempo dura o teu sono? é sereno ou tens insónias? porque nessa pele sem mácula encontro sombras. não se vêem se te olhar de frente, eu sei. dissimulas bem, mesmo quando achas que ninguém te observa. sorris muito? e dessas, quantas vezes sorris com vontade? gritas quando fazes sexo ou choras no fim? e depois? tremes de frio e enrolas-te ou estendes-te de corpo abandonado a fumar um cigarro? fumas? a que sabe a tua boca quando acordas? sabes dançar? esse pescoço diz que sim. as tuas mãos dizem que não. porque é que não és como as outras? porque é que não tentas mostrar o que sabes o que conheces o que ouves o que lês o que fazes e repetes? estás aí parada, só parada, e só tentas mostrar que estás serena. quando todos à volta se queixam da vida em altos suspiros de desgosto tu calas. reage. se te morder a orelha para te guardar o sabor, deixas? tem um orgasmo para mim. chora-o na minha cara. sentes-te bem?
agarrou o peito e os olhos alteraram-se da serenidade para um pequeno nanossegundo de desamparo. olhou em volta sem ver e voltou à redoma de abstracção. ele levantou o corpo da cadeira sem o suspiro do sacrifício. largou uma moeda no rosto riscado. e levantou os olhos do vidro.
- olha, vem comigo, vens?
- ... desculpa?
- anda, vamos correr. se te cansares enganas a dor.
não lhe interessou olhar em volta. não lhe interessou os cheiros nem os rostos.
pediu uma água e esperou. quando levou os dedos ao copo um reflexo no tampo de vidro riscado prendeu-lhe os olhos. um qualquer desassossego no cabelo comprido. um qualquer esgar perdido na pele sem sinais. prendeu-lhe os olhos.
permaneceu em sombria atenção ao reflexo no vidro riscado. com medo, talvez, de levantar os olhos para se deparar com uma figura diferente daquela ali gravada a duas dimensões, recortada pela luz demasiado forte do exterior.
os olhos pareciam límpidos à primeira impressão, mas algo se escondia por detrás da serenidade, demasiado transparente, demasiado simples. um travo morno subiu-lhe à lingua, abafou-lhe a frescura da água enquanto fixava os pormenores do cabelo preso numa trança comprida e escura, emoldurando o pescoço, o nariz espevitado, as mãos pousadas ao lado de um copo com um líquido amarelado. a roupa sem qualquer desígnio de tribo urbana ou moda. não marcava posição ou mania. vestida para agasalhar. vestida para despir.
estás do lado errado da avenida. sei-o nesses dedos inertes que de vez em quando fechas num punho pequeno, nesse olhar suavizado para não dizeres nada. há quanto tempo estás aí? vês-me? sim, vês, mas não me viste porque não olhaste. como eu não olho para ti mas para o teu reflexo. a que cheiras quando te deitas? ao creme que passas na testa em gestos desprendidos ou ao suor de um dia comprido? dormes nua? ouves música ou preferes que o silêncio não te tolde os pensamentos para que entres nos sonhos sem enganos? quanto tempo dura o teu sono? é sereno ou tens insónias? porque nessa pele sem mácula encontro sombras. não se vêem se te olhar de frente, eu sei. dissimulas bem, mesmo quando achas que ninguém te observa. sorris muito? e dessas, quantas vezes sorris com vontade? gritas quando fazes sexo ou choras no fim? e depois? tremes de frio e enrolas-te ou estendes-te de corpo abandonado a fumar um cigarro? fumas? a que sabe a tua boca quando acordas? sabes dançar? esse pescoço diz que sim. as tuas mãos dizem que não. porque é que não és como as outras? porque é que não tentas mostrar o que sabes o que conheces o que ouves o que lês o que fazes e repetes? estás aí parada, só parada, e só tentas mostrar que estás serena. quando todos à volta se queixam da vida em altos suspiros de desgosto tu calas. reage. se te morder a orelha para te guardar o sabor, deixas? tem um orgasmo para mim. chora-o na minha cara. sentes-te bem?
agarrou o peito e os olhos alteraram-se da serenidade para um pequeno nanossegundo de desamparo. olhou em volta sem ver e voltou à redoma de abstracção. ele levantou o corpo da cadeira sem o suspiro do sacrifício. largou uma moeda no rosto riscado. e levantou os olhos do vidro.
- olha, vem comigo, vens?
- ... desculpa?
- anda, vamos correr. se te cansares enganas a dor.
Comentários
o interior de uma cabeça em retrato.
perfeito.
Se algum dia alguém "tocar" na minha escrita...vais ser tu.
miak: com todo o prazer. e respeito, porque tocar na tua escrita é um privilégio!
baci *
Neste momento tenho pena de ser produtora e não editora!
BEIJOS, B.
ha! :)