não me fales em ir mais devagar, agora que finalmente as luzes se desfazem em riscos esboçados nos vidros, nos teus cabelos, nos teus olhos assustados. não percebes nada, não vês. assim sim, o mundo escorre-nos pela frente e pelos lados e não temos de o ver. não como ele é, não assim. não me digas que é perigoso, que olha o carro ali, que faz pisca, que vamos morrer. não sentes? o estremecimento do motor como se fosse o teu corpo enrolado ao meu em noites violentas que já não voltam. sim, vai-se a cidade pelo vidro, pelo cano abaixo. num único risco rasgado deixamos de ver os fragmentos, os pedaços, os pormenores, a descrição aberrante das construções, dos viadutos, do urbanismo falhado de sociedade. vão-se, são riscos como podiam ser rabiscos. mas nunca perfeitos, nunca certos, nunca lisos e discretos. são raios raivosos. dilaceram-se e multiplicam-se a cada ressalto. assim destroçamos, diluímos, e não está lá o palco da tua vaidade, da minha indiferença. ficam apenas longas pernas de neon, tão compridas que não lhes vemos as saias. não abrando, não, não quero, porque senão já consigo ouvir os outros. os carros, os velhos a escarrarem, a velhas com os cães e os sacos das compras, os drogados das moedinhas e os senhores dos fatos ao telemóvel e as mulheres das lacas e das malinhas de mão. não quero ouvir nada e vou colar o pé ao fundo até deixar de sequer ouvir a tua voz a pedir-me por favor, pára, ao menos mata-te a ti e deixa-me sair. até as tuas lágrimas já fazem esse risco perfeito de imperfeito pelo rosto, misturam-se negras nas tuas orelhas. és bonita, assim, aqui fechada, minha, de vento a riscar-te a cara enquanto gritas.
como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid...
Comentários
no vidro e na janela e na cidade
(dentro)
...
és única...
escreves bem.
muito bem.
bem... eu gosto.
... e extremamente doloroso...