disse para mim mesmo: não. isto não. e o pragmatismo caiu-me aos pés, ficou a mirar-me lá de baixo, do chão raspado, enrolado nas pernas da maca para não cair nos solavancos. era o cabelo. espalhado na miséria de almofada, soltava o teu cheiro e o que eu adivinhava ser a tua textura. emanavas dali, daquele corpo inerte, apesar de não seres tu. e eu só podia olhar para os monitores e ver aquilo a esvair-se. via-te a ti a esvaíres-te. puxava o cérebro para o comando das operações, tinha de estar alerta e no entanto duvidava agora de quem precisaria mais de medicação. delírio, confusão. vi os teus olhos raiados de verde naquele rosto pálido de olhos baços castanhos, revirados. vi-te. a surgir na rua que o meu sonho recorrente desenhava numa geometria apurada. uma rua que nunca vi na vida, mas ali era a minha rua. a única rua que interessava. porque estavas lá todas as manhãs, perto da hora de acordar. caminhavas para mim em passo lento e encostavas-te a mim. do que mais gostava era da minha completa incapacidade de agir. empurravas-me contra a parede e ficava ali a absorver esse teu cheiro, e a tua pele e de repente estávamos nus na rua onde passavam pessoas que não nos viam. encostavas-te a mim e depois nua desmanchavas-te em milhares de vidros que me perfuravam. era assim, todas as manhãs a minha mão a subir pela tua saia e a tua pele a arranhar-me e eu a gritar de qualquer coisa. sempre acordei encharcado em suor e certezas. tinha de perceber como parar aquilo. és daquelas coisas que para um gajo como eu só existe ao longe, à hora da cerveja antes de ir para casa. agora eras tu ali, eu a delirar com uma vida nas mãos, que não era a tua mas eu via-te e não conseguia fazer nada com medo que morresses. o Vicente já conhecia demasiado bem o som da máquina. os pings e os bips que dizem sim, não, talvez. não precisou do meu aviso para abrandar a ambulância. abranda-se para a alma não se descolar com a velocidade. assim um bocado como os panfletos das discotecas que nos prendem no vidro do carro, que se soltam mal aceleramos. e eu, foda-se, em vez de pensar, em vez de fazer o que faço demasiadas vezes ao dia, entrei em parafuso e só te via a ti na maca e não sabia onde me meter. depois percebi que só podia fazer uma coisa. dar-te o beijo que nunca tive coragem, porque não temos coragem para estas coisas, quando é a sério. baixei-me e encostei a minha boca à tua. hoje era eu que tinha iniciativa, a chupar-te a saliva para ver se voltavas cá para fora, para a realidade. fiquei pegado a ti à espera dos vidros. só acordei quando o Vicente me espetou um banano na tromba. atirou-me para fora da ambulância com um puxão e eu, que sou duas vezes o tamanho dele, deixei-me voar e aterrar com as mãos no asfalto. fiquei a olhar para as palmas raspadas não sei quanto tempo. voltei lá para dentro e tinhas desaparecido. restava aquela tipa de cabelo parecido com o teu e o monitor com uma linha a direito. foda-se, disse-me o Vicente, que é que te deu pá? não sei, meu, bloqueei. epá, no meu turno não, no meu turno não. depois calou-se e ficou a olhar para a rapariga. disse qualquer coisa como antes isto que ficar vegetal. acho que era para me consolar.
saiu e fechou a porta. arrancou e não falou mais. assobiava as músicas da rádio, como costuma fazer para desopilar. eu deixei-me abanar pelos solavancos. apoiei os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos. fiquei a cheirar o alcatrão da pele. a olhar para a morta. hoje à hora da cerveja a ver se falo contigo.
saiu e fechou a porta. arrancou e não falou mais. assobiava as músicas da rádio, como costuma fazer para desopilar. eu deixei-me abanar pelos solavancos. apoiei os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos. fiquei a cheirar o alcatrão da pele. a olhar para a morta. hoje à hora da cerveja a ver se falo contigo.
Comentários
"ROI-TE DE INVEJA, TIM BURTON!"
fabuloso. fabuloso. Palavras para quê? nem na faculdade me ensinam a comentar coisas destas...
Um beijo
Daniel
(...)
adorei este texto.
(beijo)
soco no estomago)
...
de nariz adunco e olhos pretos?
Aquele homem enfermo sem sombra
que existe nas profundezas do vazio
e se arrasta pelos meandros do vício,
sem nome, sem destino,
alimenta-se a destroços espalhados,
resquícios dos sentimentos
das relações citadinas, neste dia,
uma noite de cada vez, sempre igual,
tenebroso soa seu silêncio viajante
como ruído e gargalhada sem dentes
vivida num buraco interminável, horrível,
demasiado escondido do sol para ter eco
mas presente em cada múrmurio desesperado...
Tem garras que tudo alcançam se olhar
derrubar-te-á prostrado num pelourinho,
suas unhas fincam sujidade entranhada
e devolvem-te ao pesadelo antigo que
supunhas ter conseguido esquecer...
Cavaleiro conhecedor dos mistérios,
das falhas que nos deviam decantar,
frustrações sonhadas unam-se anuais,
diárias, sempre iguais e vingem-se de
olhar o tecto de propósito para chorar.
IN TREPIDAÇÃO/TREPANAÇÃO 2004
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