apaixonei-me por ti de caixão à cova quando tinha 9 anos. antes disso já me andavas a rondar. aprendi a ler e a escrever e a falar e isso libertou-me. devagar, em pequenos sabores no recreio, ao fim da tarde nos têpêcês em letra ensaiada porque nunca sabemos como há-de vir a ser a letra da nossa vida. sem medo do apagador, direita na cadeira, amarrecava-me para fazer a perninha do 'a'. e as regras todas de como se faz acompanhar o quê de nove, atrás de um bê ou de um pê vem sempre um mê. e eu praticava a letra, uns dias mais espraiada, outras mais arredondada: esfolei demasiado os joelhos para ser feminina, mas sempre gostei de batom, era assim, simples, podia ser-se tudo ao mesmo tempo porque há misturas que não fazem mal ao fígado.
achei graça, dizia eu, a isto das letras, assim o caderno falava comigo e era eu que o punha a falar e sabia como dizer o que me ia na gana.
ria-me muito. sempre me ri muito
- é um problema que tenho, há-de dizer o cinzentista e o intelectual pseudo-atormentado -,
mas também dava caneladas. agora só digo palavrões entredentes e atropelo os outros com assertividade a eito, estou muito mais comedida.
mas dizia que me apaixonei. sabias? eu também não, que isso de paixões era só trocar bilhetes por baixo da carteira e roubar beijos ao Carlos dos olhos verdes. por isso não dei por nada. e quando não se dá por nada, a coisa entranha-se muito mais devagar, e bem mais fundo.
como o outro amor da minha vida que apareceu em simples silêncios no escuro frio e uma pessoa sem dar por nada.
o problema de não se dar por nada é que é como fumar cigarros. sabe bem um de vez em quando, e quando sabe bem uma pessoa volta lá.
às tantas fumo-te um atrás do outro.
mas tu não fazes mal à saúde. quer dizer, até fazes, se formos práticos e isso do dinheiro e dos que controlam. mas hoje não me apetece isso. hoje apeteces-me tu e contar-te como foi.
estiveste lá sempre, simplesmente, a olhar para mim. e eu a olhar para ti e a namorar-te sem saber. começaste, portanto, com o olhar. dizer coisas. começa-se por dizer com os olhos e com o choro e assim. e depois dizem-se coisas e deixamos de chorar tanto. viciou-me sempre aprender a dizer.
então aprendi a falar e a ler e a escrever não necessariamente por esta ordem. e pronto.
e depois vieram dizer-me que havia quem ensinasse a falar melhor e que podia dançar e cantar e descobrir o que é que os poemas querem dizer. nada como um poema para engatar uma miúda de nove anos, já sabes. junta isso com a música. a verdadeira, a que nos pega pelos cornos, dá-nos arrepios sempre, apanha-nos sempre de surpresa, mesmo que a ouçamos ininterruptamente. numa palavra, vá... Piazzolla. percebeste agora?
pronto, na sala 8 às terças e quintas podiam ensinar-me isso tudo e como eu não tinha aulas de Religião e Moral, fui. de caderno novo, em branco, que sempre gostei desse cheiro e do branco e do ritual sagrado de pousar pela primeira vez a caneta no caderno. tem é de ser a caneta perfeita.
adoro descobrir as canetas perfeitas.
muito direita na cadeira olhos esbugalhados e caneta em riste, vinquei a capa do caderno para não me bater na caneta e atrapalhar a letra perfeita da primeira aula da primeira página. bem aberto, o caderno, como a alma. sempre aprendiz.
abriste-te a mim em fotocópias na pontas ovais de unhas nacaradas em dedos enrugados, recortes de livros montados numa só página com um vago cheiro a toner e a laca da professora. e o batom vermelho e eu a gostar de como o batom vermelho se arabescava nas sílabas dela que eram poemas e queriam dizer coisas. mas acho que foram os olhos dela, também. brilham, os olhos destas pessoas apaixonadas que não sabem. brilham de forma diferente porque só têm de falar para fazer amor e isso é especial. eu acho.
porque é tudo falar e explicar os poemas com o corpo. és tão simples que não me dei conta que isso era o que se chama de amor. pensei que era coisa tortuosa, que arranca noites de sono à vida. arrancas, mas isso é quando queremos viver contigo para sempre e não podemos. fora isso, tudo bem.
fora isso, tu por ti como tu és por seres quem és, és simples.
pode-se aprender a dar as mãos e contar histórias e cantar e dançar e é tudo para dar, nada fica só aqui, nada pode ficar fechado, é a lei. sem medo de tocar. eu nunca tive medo de tocar mas depois tinha medo que tivessem medo que lhes tocasse. e contigo dependemos disso, de tocar e de que nos toquem. com os olhos ou com as palavras. no arame, sem rede, no ar ou debaixo de água, só dependemos das palavras e do toque e com essas armas que podem ser de arremesso precisamos de tocar lá, do outro lado do espelho, ou rebentar com a quarta parede, se quiseres ser técnico.
por isso dei por mim contigo todos os dias para te saber de cor.
cor, s.m. coração afecto desejo coragem inclinação. de cor e salteado: muito bem, muito a fundo.
saber muito bem, muito a fundo. sabe muito bem, muito a fundo, é isso mesmo, o dicionário às vezes explica.
tinha nove anos quando me deixaste entrar. e ontem percebi, quando lá voltei, que foi há vinte.
achei graça, dizia eu, a isto das letras, assim o caderno falava comigo e era eu que o punha a falar e sabia como dizer o que me ia na gana.
ria-me muito. sempre me ri muito
- é um problema que tenho, há-de dizer o cinzentista e o intelectual pseudo-atormentado -,
mas também dava caneladas. agora só digo palavrões entredentes e atropelo os outros com assertividade a eito, estou muito mais comedida.
mas dizia que me apaixonei. sabias? eu também não, que isso de paixões era só trocar bilhetes por baixo da carteira e roubar beijos ao Carlos dos olhos verdes. por isso não dei por nada. e quando não se dá por nada, a coisa entranha-se muito mais devagar, e bem mais fundo.
como o outro amor da minha vida que apareceu em simples silêncios no escuro frio e uma pessoa sem dar por nada.
o problema de não se dar por nada é que é como fumar cigarros. sabe bem um de vez em quando, e quando sabe bem uma pessoa volta lá.
às tantas fumo-te um atrás do outro.
mas tu não fazes mal à saúde. quer dizer, até fazes, se formos práticos e isso do dinheiro e dos que controlam. mas hoje não me apetece isso. hoje apeteces-me tu e contar-te como foi.
estiveste lá sempre, simplesmente, a olhar para mim. e eu a olhar para ti e a namorar-te sem saber. começaste, portanto, com o olhar. dizer coisas. começa-se por dizer com os olhos e com o choro e assim. e depois dizem-se coisas e deixamos de chorar tanto. viciou-me sempre aprender a dizer.
então aprendi a falar e a ler e a escrever não necessariamente por esta ordem. e pronto.
e depois vieram dizer-me que havia quem ensinasse a falar melhor e que podia dançar e cantar e descobrir o que é que os poemas querem dizer. nada como um poema para engatar uma miúda de nove anos, já sabes. junta isso com a música. a verdadeira, a que nos pega pelos cornos, dá-nos arrepios sempre, apanha-nos sempre de surpresa, mesmo que a ouçamos ininterruptamente. numa palavra, vá... Piazzolla. percebeste agora?
pronto, na sala 8 às terças e quintas podiam ensinar-me isso tudo e como eu não tinha aulas de Religião e Moral, fui. de caderno novo, em branco, que sempre gostei desse cheiro e do branco e do ritual sagrado de pousar pela primeira vez a caneta no caderno. tem é de ser a caneta perfeita.
adoro descobrir as canetas perfeitas.
muito direita na cadeira olhos esbugalhados e caneta em riste, vinquei a capa do caderno para não me bater na caneta e atrapalhar a letra perfeita da primeira aula da primeira página. bem aberto, o caderno, como a alma. sempre aprendiz.
abriste-te a mim em fotocópias na pontas ovais de unhas nacaradas em dedos enrugados, recortes de livros montados numa só página com um vago cheiro a toner e a laca da professora. e o batom vermelho e eu a gostar de como o batom vermelho se arabescava nas sílabas dela que eram poemas e queriam dizer coisas. mas acho que foram os olhos dela, também. brilham, os olhos destas pessoas apaixonadas que não sabem. brilham de forma diferente porque só têm de falar para fazer amor e isso é especial. eu acho.
porque é tudo falar e explicar os poemas com o corpo. és tão simples que não me dei conta que isso era o que se chama de amor. pensei que era coisa tortuosa, que arranca noites de sono à vida. arrancas, mas isso é quando queremos viver contigo para sempre e não podemos. fora isso, tudo bem.
fora isso, tu por ti como tu és por seres quem és, és simples.
pode-se aprender a dar as mãos e contar histórias e cantar e dançar e é tudo para dar, nada fica só aqui, nada pode ficar fechado, é a lei. sem medo de tocar. eu nunca tive medo de tocar mas depois tinha medo que tivessem medo que lhes tocasse. e contigo dependemos disso, de tocar e de que nos toquem. com os olhos ou com as palavras. no arame, sem rede, no ar ou debaixo de água, só dependemos das palavras e do toque e com essas armas que podem ser de arremesso precisamos de tocar lá, do outro lado do espelho, ou rebentar com a quarta parede, se quiseres ser técnico.
por isso dei por mim contigo todos os dias para te saber de cor.
cor, s.m. coração afecto desejo coragem inclinação. de cor e salteado: muito bem, muito a fundo.
saber muito bem, muito a fundo. sabe muito bem, muito a fundo, é isso mesmo, o dicionário às vezes explica.
tinha nove anos quando me deixaste entrar. e ontem percebi, quando lá voltei, que foi há vinte.
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