abro o casaco porque já começa o calor.
ajusto a mochila e saio da barafunda degradada e pseudo-civilizada dos restauradores para a estreita calçada da Glória. uma pequena fila espera que o elevador abra as portas. chineses, japoneses, alemães e demais nacionalidades olham de boca aberta para o peculiar rectângulo amarelo forrado a madeira que acabou de chegar à paragem, passeando-se nos carris. tiram fotos e nos seus olhos a pergunta (em línguas desconhecidas) "para que é que aquilo serve?" ou "onde é que se irá naquilo amarelo" ou até "que pitoresco, não?".
entro a seguir a um par de pessoas. aguarda-me o banco corrido de madeira às tiras e uma espera de alguns minutos. observo, de mochila no colo, quem passa por mim. à minha frente senta-se uma senhora reformada que olha para toda a gente como se medisse quem tem mais que ela. basicamente toda a gente tem algo mais que ela. há, portanto, muito para observar. um casal de velhotes entra e o velho pousa no chão os sacos do Continente. ela senta-se entre a outra reformada e a parede. o velhote anda às voltas com os trocos e depois de barafustar com a mulher, que é demasiado lenta para ele, lá paga do seu porta-moedas os 2,40€ que devem doer a desembolsar. ele tem bom aspecto, um colete verde cheio de bolsos, calças muito engomadas, camisa às riscas impecável. barafusta de novo com ela porque ela se sentou de forma a que terão de ficar separados. "és chato como a merda, tu", é a resposta. mas naquele azul dos olhos dela, uma dor calada e conformada fica por sair. ela estende-lhe o dinheiro que ele lhe tinha pedido e ele recusa, diz que agora não quer. mas depois volta a estender a mão. sovina... ela tem um ar gasto, cansado. as pernas enormes muito brancas têm riscos roxos, gordos, cada um de um esforço ou uma dor. cabelo por lavar, por pintar.
entra um grupo de turistas cor de rosa, gordos da comida típica portuguesa, os Mac Donalds de Lisboa, câmaras caras, telemóveis caros, para os quais gesticulam em risos altos em alemão.
mais duas ou três donas de casa de ar gasto e cansado. de carteiras velhas debaixo do braço e saco das compras. o banco corrido já não é banco, é uma amálgama de gente, rabos, calças e saias. duas telefonistas ou secretárias entram. falam pelos cotovelos, como convém. calças justas ao rabo demasiado grande, a barriga branca a sair de fora das blusas justas, muito ouro, bandolete, mala da moda e saquinho de plástico da boutique matilde. cheiram enjoativamente a perfume acabado de pulverizar. falam da filha de uma que não está, obviamente, presente.
mais turistas, também nórdicas, muito magras, com as caras achatadas e ar frágil. compram mas não picam o bilhete. a condutora do elevador não levanta os olhos da revista onde namora o Virgílio Castelo para as avisar. os apitos do Lisboa Viva e do Sete Colinas. na placa diz "4 lugares de pé", mas já estão umas 10 pessoas no corredor. os turistas incomodam toda a gente para tirar a foto da praxe. já vejo a moldura dourada em cima da tv e os sorrisos porcinos, as mochilas e as t-shirts com os galos de Barcelos.
entra um casal jovem, ele de calças de fato de treino, ela de calças de ganga justas, com um pequenito pela mão, que conseguem espremer no assento entre duas das reformadas. não se falam, só se dirigem ao miúdo, de boné e olhos doces. uma pequenita com um enorme totó repuxado, pele de chocolate e bibe de quadrados amarelos entra com o pai pela mão. é ela que diz ao senhor onde se devem acomodar para não incomodarem tanto a entrada, e é ela que passa o seu Lisboa Viva pendurado ao pescoço no leitor, e pica o bilhete ao pai. pacientemente, fura entre os enormes rabos e os cheiros de perfume acabado de pulverizar, puxando o pai.
finalmente a senhora condutora dá uma pausa ao namoro com o Virgílio e pede a quem está pendurado na entrada que feche a grade. mas chegou mais um metro e entra mais meia dúzia de reformadas. três ou quatro pessoas ficam de fora e olham o elevador e a calçada íngreme, indecisas, respirando fundo antes de desafiar a subida a pé.
tlim tlim. sobe devagarinho e amarelo a calçada, no seu puxar lento, duvidosamente eléctrico. pára quase lá em cima, talvez por falta de força. está cansado, também, o elevador. volta a arrancar e pára à beira das escadas. deixo sair quase toda a gente porque sei que os turistas ainda vão ficar parados lá ao fundo a fotografar mais um pouco.
saio para o ar do Bairro Alto e sou recebida pelas cores dos prédios e pelas janelas antigas. para trás ficaram o casal de velhotes, o sovina e a gasta, ele saiu antes dela e não olhou para trás para ver se ela vinha ali. certezas e conformações de tantos anos a dois, talvez. a menina do totó e do bibe amarelo atravessa o pai, e guia-o para dentro do Bairro Alto. viro á direita e reparo que à minha frente segue o casal que não se fala. ela vai em passo rápido, a esbracejar para o homem. o pequenito, arrastado por ela, tenta acompanhar a passada demasiado comprida até para mim e tropeça duas vezes. perco-os de vista depois do quiosque-bar, para deparar com mais bibes. vermelhos e amarelos, e panamás, muitos, de cores variadas. em fila indiana, dois a dois, de mão dada, olhos perdidos na luz do sol que ali não é filtrada pelas árvores do miradouro. riem, falam muito e as monitoras lá tentam organizá-los e assoá-los.
entro no "meu" café para ser recebida com o "Bom Dia" cantado de uma das raparigas. "é uma italiana, sim".
ajusto a mochila e saio da barafunda degradada e pseudo-civilizada dos restauradores para a estreita calçada da Glória. uma pequena fila espera que o elevador abra as portas. chineses, japoneses, alemães e demais nacionalidades olham de boca aberta para o peculiar rectângulo amarelo forrado a madeira que acabou de chegar à paragem, passeando-se nos carris. tiram fotos e nos seus olhos a pergunta (em línguas desconhecidas) "para que é que aquilo serve?" ou "onde é que se irá naquilo amarelo" ou até "que pitoresco, não?".
entro a seguir a um par de pessoas. aguarda-me o banco corrido de madeira às tiras e uma espera de alguns minutos. observo, de mochila no colo, quem passa por mim. à minha frente senta-se uma senhora reformada que olha para toda a gente como se medisse quem tem mais que ela. basicamente toda a gente tem algo mais que ela. há, portanto, muito para observar. um casal de velhotes entra e o velho pousa no chão os sacos do Continente. ela senta-se entre a outra reformada e a parede. o velhote anda às voltas com os trocos e depois de barafustar com a mulher, que é demasiado lenta para ele, lá paga do seu porta-moedas os 2,40€ que devem doer a desembolsar. ele tem bom aspecto, um colete verde cheio de bolsos, calças muito engomadas, camisa às riscas impecável. barafusta de novo com ela porque ela se sentou de forma a que terão de ficar separados. "és chato como a merda, tu", é a resposta. mas naquele azul dos olhos dela, uma dor calada e conformada fica por sair. ela estende-lhe o dinheiro que ele lhe tinha pedido e ele recusa, diz que agora não quer. mas depois volta a estender a mão. sovina... ela tem um ar gasto, cansado. as pernas enormes muito brancas têm riscos roxos, gordos, cada um de um esforço ou uma dor. cabelo por lavar, por pintar.
entra um grupo de turistas cor de rosa, gordos da comida típica portuguesa, os Mac Donalds de Lisboa, câmaras caras, telemóveis caros, para os quais gesticulam em risos altos em alemão.
mais duas ou três donas de casa de ar gasto e cansado. de carteiras velhas debaixo do braço e saco das compras. o banco corrido já não é banco, é uma amálgama de gente, rabos, calças e saias. duas telefonistas ou secretárias entram. falam pelos cotovelos, como convém. calças justas ao rabo demasiado grande, a barriga branca a sair de fora das blusas justas, muito ouro, bandolete, mala da moda e saquinho de plástico da boutique matilde. cheiram enjoativamente a perfume acabado de pulverizar. falam da filha de uma que não está, obviamente, presente.
mais turistas, também nórdicas, muito magras, com as caras achatadas e ar frágil. compram mas não picam o bilhete. a condutora do elevador não levanta os olhos da revista onde namora o Virgílio Castelo para as avisar. os apitos do Lisboa Viva e do Sete Colinas. na placa diz "4 lugares de pé", mas já estão umas 10 pessoas no corredor. os turistas incomodam toda a gente para tirar a foto da praxe. já vejo a moldura dourada em cima da tv e os sorrisos porcinos, as mochilas e as t-shirts com os galos de Barcelos.
entra um casal jovem, ele de calças de fato de treino, ela de calças de ganga justas, com um pequenito pela mão, que conseguem espremer no assento entre duas das reformadas. não se falam, só se dirigem ao miúdo, de boné e olhos doces. uma pequenita com um enorme totó repuxado, pele de chocolate e bibe de quadrados amarelos entra com o pai pela mão. é ela que diz ao senhor onde se devem acomodar para não incomodarem tanto a entrada, e é ela que passa o seu Lisboa Viva pendurado ao pescoço no leitor, e pica o bilhete ao pai. pacientemente, fura entre os enormes rabos e os cheiros de perfume acabado de pulverizar, puxando o pai.
finalmente a senhora condutora dá uma pausa ao namoro com o Virgílio e pede a quem está pendurado na entrada que feche a grade. mas chegou mais um metro e entra mais meia dúzia de reformadas. três ou quatro pessoas ficam de fora e olham o elevador e a calçada íngreme, indecisas, respirando fundo antes de desafiar a subida a pé.
tlim tlim. sobe devagarinho e amarelo a calçada, no seu puxar lento, duvidosamente eléctrico. pára quase lá em cima, talvez por falta de força. está cansado, também, o elevador. volta a arrancar e pára à beira das escadas. deixo sair quase toda a gente porque sei que os turistas ainda vão ficar parados lá ao fundo a fotografar mais um pouco.
saio para o ar do Bairro Alto e sou recebida pelas cores dos prédios e pelas janelas antigas. para trás ficaram o casal de velhotes, o sovina e a gasta, ele saiu antes dela e não olhou para trás para ver se ela vinha ali. certezas e conformações de tantos anos a dois, talvez. a menina do totó e do bibe amarelo atravessa o pai, e guia-o para dentro do Bairro Alto. viro á direita e reparo que à minha frente segue o casal que não se fala. ela vai em passo rápido, a esbracejar para o homem. o pequenito, arrastado por ela, tenta acompanhar a passada demasiado comprida até para mim e tropeça duas vezes. perco-os de vista depois do quiosque-bar, para deparar com mais bibes. vermelhos e amarelos, e panamás, muitos, de cores variadas. em fila indiana, dois a dois, de mão dada, olhos perdidos na luz do sol que ali não é filtrada pelas árvores do miradouro. riem, falam muito e as monitoras lá tentam organizá-los e assoá-los.
entro no "meu" café para ser recebida com o "Bom Dia" cantado de uma das raparigas. "é uma italiana, sim".
Comentários
Beijinhos:)!
e assim é o bairro!
bela descrição do dia a dia desse elevador que tanto geito dá, e das pessoas que por instantes o ocupam...