entraste, simplesmente. recortaste-te na luz contra a penumbra atrás de ti. a noite já se fundia no céu azul. o outono é assim. recortaste-te não pela tua figura imponente, mas pelo vermelho da gabardine, subitamente incendiado pelos néons do restaurante. olhaste em volta e em cada resquício de movimento li que o sistema da loja não te era familiar. estavas mais próxima, agora. encostaste-te ao balcão. levaste a mão ao bolso enquanto esperavas que a velha dos sacos à tua frente fosse atendida. tiraste um pequeno leitor de mp3 de marca branca e carregaste num botão. levantaste o olhar e o empregado esperava-te. esticaste o pescoço para a frente, levando os dedos aos phones e tirando-os dos ouvidos. fizeste o teu pedido. as bebidas são self-service. seguiste-lhe o dedo indicador espetado e dirigiste-te aos copos, de passo hesitante. uma cola. lá do fundo ele perguntava-te mais coisas. quer queijo? quer salada? a tudo respondias com um sorriso cansado.
sentaste-te a comer isolando os olhos do mundo no aconchego familiar de um livro de capa usada, os pensamentos embalaste com essa qualquer música que voltaste a pedir ao leitor. estavas desajustada.
dei comigo com a sandes fria, só de ficar a adivinhar-te. não consegui. inventei-te uma história. mas precisava de pormenores.
por enquanto digo-te a música: Dead Combo. não tem letra, acompanha as palavras com mais discrição.
comeste a sandes com a lentidão suave de quem ainda tem tempo. sei isso porque viste as horas por duas vezes no telemóvel e parecias indecisa, já com o canto do pão na mão, se ficavas ou saías. saíste. e eu contigo, sem me notares porque não se notam tanto os fantasmas quando a música toca alta dentro da nossa cabeça. achei que devias ter medo da cidade à noite, também os ladrões passam mais discretos, assim.
radiohead - no surprises
sabias para onde ias. paraste nos semáforos vermelhos, mesmo que a estrada não tivesse carros. encostavas-te aos postes, num misto de espera dengosa, cansaço e tempo para consumir. nunca olhaste para trás. percebi onde ias. mas a poucos metros da porta paraste. abriste a mala e do que me pareceu ser uma agenda tiraste um bilhete. o candeeiro explicou-me que havia outro, que ficou ali, preso num clip. percebi-te. chegaste à porta e no mesmo gesto elástico encostaste-te a um separador do passeio. ali puxaste de um cigarro.
nouvelle vague - I melt with you
viste de novo as horas. e deixaste-te ficar, observando em volta os carros a chegar e parar à porta, largando gente de roupa fina. outros que passavam e abrandavam como se estivessem a ver um acidente no meio da auto-estrada. olhaste com atenção a formação de grupos, as pessoas que entravam orgulhosamente de envelope na mão, como que exibindo um troféu. os casais curiosos, as velhas cheias de laca, as gentes mais novas de roupas pendonas coloridas e penteados despenteados. lado a lado com as meninas de rabos de cavalo, argolas, camisa dentro das jeans e sapato de salto agulha.
indiferente às aparências, abanavas agora a cabeça com algo mais mexido com um meio-sorriso irónico nos lábios.
divine comedy - generation sex
lá dentro, os flashes, o burburinho que não ouvias, a reverência dos porteiros e a agitação que se notava nas janelas de vidro, de mulheres bem vestidas agarradas a telemóveis. apercebias-te de tudo com a naturalidade de quem sabe o que é mas sempre foi transparente. viraste-te de costas para a entrada e olhaste para o céu. ali quis que pedisses um desejo. viste as horas uma última vez, tiraste da algibeira o leitor e desligaste-o. o fio ficou preso nas hastes dos óculos de sol, que trazias ali também. empunhaste o bilhete e no mesmo andar lento e decidido entraste. não desapareceste na turba das lantejoulas. a gabardine não deixou. percebi o teu à vontade no meio de olhares jocosos porque sabias - achavas - que ninguém te olharia duas vezes. só deixei de te ver quando desceste as escadas. mas soube que voltarias, minutos depois, o cabelo mais sedoso e as mãos húmidas. resolveste-te então a entrar. estendeste o bilhete ao primeiro senhor careca de bigode que te apareceu, solícito, ignorando a figura pública atrás de ti. seguiste-o com um sorriso para fora da minha vista.
sentaste-te a comer isolando os olhos do mundo no aconchego familiar de um livro de capa usada, os pensamentos embalaste com essa qualquer música que voltaste a pedir ao leitor. estavas desajustada.
dei comigo com a sandes fria, só de ficar a adivinhar-te. não consegui. inventei-te uma história. mas precisava de pormenores.
por enquanto digo-te a música: Dead Combo. não tem letra, acompanha as palavras com mais discrição.
comeste a sandes com a lentidão suave de quem ainda tem tempo. sei isso porque viste as horas por duas vezes no telemóvel e parecias indecisa, já com o canto do pão na mão, se ficavas ou saías. saíste. e eu contigo, sem me notares porque não se notam tanto os fantasmas quando a música toca alta dentro da nossa cabeça. achei que devias ter medo da cidade à noite, também os ladrões passam mais discretos, assim.
radiohead - no surprises
sabias para onde ias. paraste nos semáforos vermelhos, mesmo que a estrada não tivesse carros. encostavas-te aos postes, num misto de espera dengosa, cansaço e tempo para consumir. nunca olhaste para trás. percebi onde ias. mas a poucos metros da porta paraste. abriste a mala e do que me pareceu ser uma agenda tiraste um bilhete. o candeeiro explicou-me que havia outro, que ficou ali, preso num clip. percebi-te. chegaste à porta e no mesmo gesto elástico encostaste-te a um separador do passeio. ali puxaste de um cigarro.
nouvelle vague - I melt with you
viste de novo as horas. e deixaste-te ficar, observando em volta os carros a chegar e parar à porta, largando gente de roupa fina. outros que passavam e abrandavam como se estivessem a ver um acidente no meio da auto-estrada. olhaste com atenção a formação de grupos, as pessoas que entravam orgulhosamente de envelope na mão, como que exibindo um troféu. os casais curiosos, as velhas cheias de laca, as gentes mais novas de roupas pendonas coloridas e penteados despenteados. lado a lado com as meninas de rabos de cavalo, argolas, camisa dentro das jeans e sapato de salto agulha.
indiferente às aparências, abanavas agora a cabeça com algo mais mexido com um meio-sorriso irónico nos lábios.
divine comedy - generation sex
lá dentro, os flashes, o burburinho que não ouvias, a reverência dos porteiros e a agitação que se notava nas janelas de vidro, de mulheres bem vestidas agarradas a telemóveis. apercebias-te de tudo com a naturalidade de quem sabe o que é mas sempre foi transparente. viraste-te de costas para a entrada e olhaste para o céu. ali quis que pedisses um desejo. viste as horas uma última vez, tiraste da algibeira o leitor e desligaste-o. o fio ficou preso nas hastes dos óculos de sol, que trazias ali também. empunhaste o bilhete e no mesmo andar lento e decidido entraste. não desapareceste na turba das lantejoulas. a gabardine não deixou. percebi o teu à vontade no meio de olhares jocosos porque sabias - achavas - que ninguém te olharia duas vezes. só deixei de te ver quando desceste as escadas. mas soube que voltarias, minutos depois, o cabelo mais sedoso e as mãos húmidas. resolveste-te então a entrar. estendeste o bilhete ao primeiro senhor careca de bigode que te apareceu, solícito, ignorando a figura pública atrás de ti. seguiste-o com um sorriso para fora da minha vista.
Comentários