são dez da noite e a calçada ainda cheira a chuva. arabescos de fumo confundem-se com o céu nublado e esperamos ouvir os saltos da Lu chapinhar nas poças. depois de um abanar contente do guarda-chuva, entramos.
é tão discreto, secreto, lento o ar ali dentro. nada se mexe para não fazer barulho. até as bolhinhas da cerveja dançam devagarinho. ao fundo, depois das cabeças, o preto. o negrume das mãos postas na tensão da nota, ou será da palavra. não importa. são as mãos, as mãos e os riscos dos olhos que saltam, que vibram, que escorrem nas paredes, para dentro do colarinho e arrepiam devagar a pele desidratada de música.
nos intervalos há conversas, há risos roubados ao silêncio, que recua com uma certa benevolência. são jovens, todos, deixá-los. depois voltam, com as guitarras, com os xailes e o preto, às suas outras personagens.
observo. as notas, as cadências e as mudanças de volume.
escuto. os corpos parece que inchados, direitos, o queixo ao alto à procura. e as outras mãos, os outros olhos fechados, pelas cordas que cortam os dedos.
ouço que ferem devagarinho, como uma faca a cortar manteiga.
abro o caderno.
demos as mãos
e senti as tuas veias
movediças como areias
latejando no meu pulso
demos as mãos
e a tarde ficou cativa
daquele primeiro impulso
que faz a gente estar viva
demos as mãos
e aconteceu a vida
vida própria e desmedida
e à nossa dimensão
demos as mãos
e começou a subida
do coração à cabeça
da cabeça ao coração
demos as mãos
e morremos devagar
no amar e odiar
dos amantes perseguidos
demos as mãos
e ficámos no lugar
das horas por despertar
no relógio dos sentidos*
- ouves?
- sim.
- estão a "cantar de nós".
sorris.
fecho o caderno. a cerveja amoleceu.
importam os traços ao sabor dos choros e das conversas castiças das guitarras.
*josé carlos ary dos santos
Comentários
há noites em que talentos se juntam e o resultado é este.
brilhante.
(mesmo não estando lá, bastou ler-te para vivermos o ambiente)
[boa prosa, como sempre.....]
bj