todos os dias lá está. veste roupa escura e suja, indescrita. tem um corpo estreito e seco, alto, do qual parece estar sempre a cair. o olhar parece não passar além dos olhos. cansaço. puro cansaço e tristeza. e um brilho febril de um qualquer ente deformado e reptilíneo que lhe rasga a vontade de ser, comendo-lhe a vida pelas veias. às vezes traz uma fita cor de rosa alegre que lhe prende desajeitadamente os cabelos limpos mas despenteados. o rosto moreno e comprido já foi bonito, salpicado de sardas e de lábios bem delineados que entretanto perderam a forma do sorriso. jovem, terá se tanto a minha idade. a voz sai-lhe grave e arrastada.
senta-se na caixa da electricidade e dali pergunta a quem entra na loja se à saída não pode dar uma moedinha. passam por ela todos os dias muitas caras de sempre. no entanto parece nunca reconhecer nenhuma. fala a cada um com a mesma ladainha, o mesmo olhar vazio e desencontrado do simples reconhecimento. lê revistas e jornais que alguém lhe dá e partilha com o arrumador os cigarros que lhe vão arranjando em jeito de moedas que não aparecem. deseja saúde e um bom ano a quem lhe estende alguma ajuda, em Janeiro ou em Agosto.
mais uma. só mais uma. torna-se desagradável entrar na loja porque se sabe que invariavelmente se vai ouvir o "menina, se tiver uma moedinha que me possa dispensar à saída agradeço. obrigada, saúde e bom ano."
é fácil pensar em como seria. ela. onde beberia o café de manhã, onde pousaria os olhos ao atravessar a estrada, que cheiros a fariam sorrir, que tipo de mala gostaria de usar, se preferiria botas ou ténis. se gostaria de ler. se preferiria comédias ou filmes de terror. se gostaria de andar por Lisboa antiga a pé ou se preferiria os grandes espaços brancos e cimentados do Parque das Nações. se a chuva na cara a faria lamber os lábios ou baixar o rosto. se um homem alto de olhos verdes a faria perder de amores ou se preferiria o tímido franzino da mesa do fundo do restaurante. como seria ao conversar com os amigos sobre a sua banda preferida. que quadros ou imagens teria nas paredes do quarto. qual a disciplina preferida na escola. se teria complexos com a celulite, com as sardas ou com os dedos dos pés. se preferiria gatos ou cães. o campo ou a cidade. rosas ou margaridas. laranjas ou morangos.
se ao menos sentisse.
há umas noites atrás, estou à janela ao telefone. e vejo-a como todos os dias. mas nessa noite ela estava em pé, ao lado da caixa da electricidade, e todo o corpo estremecia desajeitadamente. ignorava quem passava, quem saía ou entrava na loja. apenas estremecia. virado para ela, à altura da sua coxa, um miúdo ria deliciado e desafiante, de espada do zorro em riste. e ela desengonçava-se fingindo uma morte arquejante sob o gume afiado do garboso cavaleiro.
senta-se na caixa da electricidade e dali pergunta a quem entra na loja se à saída não pode dar uma moedinha. passam por ela todos os dias muitas caras de sempre. no entanto parece nunca reconhecer nenhuma. fala a cada um com a mesma ladainha, o mesmo olhar vazio e desencontrado do simples reconhecimento. lê revistas e jornais que alguém lhe dá e partilha com o arrumador os cigarros que lhe vão arranjando em jeito de moedas que não aparecem. deseja saúde e um bom ano a quem lhe estende alguma ajuda, em Janeiro ou em Agosto.
mais uma. só mais uma. torna-se desagradável entrar na loja porque se sabe que invariavelmente se vai ouvir o "menina, se tiver uma moedinha que me possa dispensar à saída agradeço. obrigada, saúde e bom ano."
é fácil pensar em como seria. ela. onde beberia o café de manhã, onde pousaria os olhos ao atravessar a estrada, que cheiros a fariam sorrir, que tipo de mala gostaria de usar, se preferiria botas ou ténis. se gostaria de ler. se preferiria comédias ou filmes de terror. se gostaria de andar por Lisboa antiga a pé ou se preferiria os grandes espaços brancos e cimentados do Parque das Nações. se a chuva na cara a faria lamber os lábios ou baixar o rosto. se um homem alto de olhos verdes a faria perder de amores ou se preferiria o tímido franzino da mesa do fundo do restaurante. como seria ao conversar com os amigos sobre a sua banda preferida. que quadros ou imagens teria nas paredes do quarto. qual a disciplina preferida na escola. se teria complexos com a celulite, com as sardas ou com os dedos dos pés. se preferiria gatos ou cães. o campo ou a cidade. rosas ou margaridas. laranjas ou morangos.
se ao menos sentisse.
há umas noites atrás, estou à janela ao telefone. e vejo-a como todos os dias. mas nessa noite ela estava em pé, ao lado da caixa da electricidade, e todo o corpo estremecia desajeitadamente. ignorava quem passava, quem saía ou entrava na loja. apenas estremecia. virado para ela, à altura da sua coxa, um miúdo ria deliciado e desafiante, de espada do zorro em riste. e ela desengonçava-se fingindo uma morte arquejante sob o gume afiado do garboso cavaleiro.
Comentários
"vim do hospital" disse.
era de manhã.
ao fim do dia lá estava com um ar pior que o da manhã. tinha fome, não tinha cigarros nem quem a viesse buscar.
será que apareceu alguém para a levar dali?
dois dias depois estava ao lado da porta da loja e lá saiu:
"se tiver uma moedinha que me possa dispensar à saída agradeço. obrigada, saúde e bom ano."
Mas aqui vai...
Pessoa preferida e de que se prefere ler - Polegar.
Textos que me deixam imagens presas - Os teus.
É impossível que tamanho talento (o teu) não deixe a sua marca...
Bj.
miak: tu é que me deixas sem o que dizer...
colher: talvez porque os vazios dos anónimos também sejam em si presenças.
rantas: enquanto gostes, é o que interessa :)
maluco beleza: não pretendi com este post fazer qualquer julgamento de valor. apenas o relato das imagens que esta alma me proporciona... o que é a felicidade? um abraço. um cigarro. uma moeda... o que é que te faz feliz?
nuno vaz: não. há o cruzamento entre o conformismo e o medo. medo de que a mão não seja o que ela precisa. de que precise apenas do cigarro ou da moeda. e não precise de mim...