Avançar para o conteúdo principal

a garrafa partida

cabeça quente, mãos geladas, terceira ou trigésima reclamação no banco, o vapor sai-me da boca, passos largos, não sinto os dedos dos pés.

dois homens discutem. penso que talvez a típica disputa territorial dos arrumadores, sigo em frente. mas os meus olhos agarram uma mão que aperta uma garrafa partida.
páro e alerto. ele tem uma garrafa partida. as palavras chegam-me vagas, um sotaque, um torvelinho entre os berros de um e os sussurros lunáticos do outro. queres-me matar? este é redondo e escuro, de casaco verde que deve ser pouco consolo neste frio. tem uma faca. o outro tem uma ponta-e-mola, aninhada no punho. o outro, de fato, gravata e cachecol mas cabelo desalinhado e óculos demasiado grossos, um olhar demasiado perdido, mais perdido, tem uma ponta e mola.
percebo a garrafa partida. para arrumador de espírito enevoado de vícios ou só demasiado azar na vida, até teve presença de espírito.
procuro um polícia. desespero, o frio a cortar-me os olhos e o medo que se corte algo mais, à procura no meio de tanto sobretudo, tanto fato e gravata, tanto salto agulha, procuro uma merda de uma farda azul escura. não. está demasiado frio para se estar na rua. e os centros comerciais até têm segurança privada.

por isso aproximamo-nos. continuam a esbracejar, mas vêem-nos chegar. o homem redondo parece aliviado por não ser transparente. castanho transparente como os cacos da garrafa que leva na mão. o outro fica desnorteado, contrariado. diz meia dúzia de ininteligências e contrafeito lá se vai afastando. fica do lado de lá da fila de carros, finge que se vai embora. mas ainda lhe vemos a cabeça desalinhada a aproximar-se de novo. vai. vem. finge que olha para os carros. estranho homenzinho pequeno de olhos perdidos e cabelo embaraçado, estranho homem que veste um fato mas que veste aqueles olhos e a mão em volta da ponta-e-mola.

ficamos de guarda. de pé, no meio do estacionamento, o homem pequeno a desistir, a sumir-se no meio dos outros fatos e gravatas, e nós a ouvir aquele sotaque do homem redondo aliviado, repetitivo, em ladainha exaltada.

uma hora aqui. olha as coisas, os carros. tem uma faca. meu peito queria matar. é maluco.

a minha cara não tem nada a dizer. pouco interessa. mesmo que bem articulado, nunca me conseguiriam explicar o que aconteceu ali.

Comentários

MPR disse…
Parecem as histórias à velha portuguesa, Alfama e Mouraria...
intruso disse…
fragmentos de uma cidade estranha, a espaços...



bj
Barroca Louca disse…
Cidade estranha, indeed.
Manel disse…
... que grande filme, bolas.

Mensagens populares deste blogue

sabes quando te revisitas e já não te encontras? não sabes o que fazer de ti contigo. as perdas têm sido valentes, as estocadas mais fundas. pensei que por agora a pele estivesse mais grossa, mas não. pensei que estivesse de pés assentes, mas há força nas pernas. perdi o meu pai. perdi o meu chão. espero por uma fase boa. em que esteja tudo bem, organizado. nem que venha depois outra ventania, mas um pedaço de vida em que tudo esteja no seu lugar. só por um bocadinho. mas não. as peças estão espalhadas, quando começo a arrumar umas, caem ao chão as do outro canto da vida. um empilhar de pratos num tabuleiro demasiado cheio, que não se tem oportunidade de ir despejar à cozinha. até as metáforas me saem avariadas, já. tabuleiros de cozinha é o que me sobra. isto são metáforas, certo? é um padrão, o padrão caótico da minha vida, que tento desenhar em palavras que já não tenho. quero despejar-me aqui mas não sei bem como. os medos continuam, sabias? estão piores, diria, porque...

q.b. de q.i.

como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid...

there goes my hero. 1 ano

Pergunto-me o que acharias acerca desta demência toda, desta distopia rocambolesca mas ainda assim não suficientemente diferente do “normal”. Deste bailado em corda bamba da auto-idolatria com os gestos incrivelmente abandonados de ego. Desta atrapalhação profundamente honesta e refinada que se aprende fazendo e se desfaz em ilusões como uma teia fininha. Deste viver no presente forçado, fincados no agora até à dor no pescoço porque agora é que não sabemos mesmo o que vem depois de amanhã.  Provavelmente discutimos aces amente sobre uma merda política qualquer que não controlamos, para a seguir nos estarmos a rir cúmplicemente de qualquer coisa pouco apropriada. Cheira a grelhados, que o vizinho tem quintal, e aí a coisa custa mais. Esse peso bom da mão inteira na cabeça que me guardava a inquietude faz falta. Distopia é não estares aqui. O resto aguenta-se com um cravo ao peito. Contigo cravado no peito.