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agulhas de crochet

são pequenas rendas de imagens, que me surgem à velocidade dos dedos da minha avó a fazer crochet, com aquela agulha retorcida na ponta e gestos hábeis de quem se esquece da idade no passeio pelas linhas brancas. era assim que me aparecia aquela dança e eu muito atenta aconchegava os óculos de massa cor de rosa - éramos tão pirosos nos idos 80 - na cana do nariz e absorvia o "vês, é assim, passas por aqui e dás a volta" e eu de língua de fora passo por aqui e dou a volta. depois é a minha mãe, agora aprendo a fazer malha, e o barulhinho suave das agulhas que já não são retorcidas a roçarem uma na outra e a lã a queimar-me o pescoço porque me entusiasmo e vou por ali fora até quase estar enforcada na minha obra de arte que nunca chegará a ser mais que um semi-cachecol preso a um pau de metal.

assim se desenroscam os novelos da minha ideia, maldita a hora em que o homem e a mulher são animais racionais, só pensam quando não devem, no que não devem, eu, animal racional com fantasmas de bolso de estimação que não me estimam. saem-me em catadupa dos dedos e dos olhos todas as pequenas coisas que não consigo organizar, deixo-as cair como fios de algodão-doce colados em teias de aranha desordenadas mas que, se formos a ver bem, tudo liga com tudo. só não se consegue explicar tudo ao mesmo tempo. por exemplo, como explicar pequenas vitórias como conseguir dormir uma noite inteira sem o teu corpo às pintas por perto? a noite é comprida mas eu quero conseguir dormi-la toda, porque é menos um peso nesses olhos redondos de menino quando falamos nisso à medida que te aparo a barba e componho os caracóis. assim sabe-te melhor saber que te acompanho mesmo que à distância nessas caminhadas que te levam para longe e até vou deixar-te ao comboio. sempre gostei de comboios, andam no chão e embalam. fica a promessa de passearmos os dois em breve, sem chatices de gasolinas e portagens, só embalados pelo pouca-terra eléctrico a caminho de um qualquer sítio. e, sabes, aquele nosso amigo já voltou ao qualquer sítio.

assim se avalancha tudo, entre malhas bem apertadinhas como os nossos abraços do fim de noite ou a meio do dia porque é assim sempre que apetece e apetece tantas vezes. o teu lábio a tremer e eu a tentar secar-me num sorriso naquele cais, plataforma 4 carruagem 21, porque tens de saber que não me importo nada, que estou orgulhosa, que sei que vais em trabalho e voltas cansado mas feliz. tal como sei qual é a sensação, a vida que nos preenche e que poucos percebem como é que isso importa assim tanto. mas eu sei como é, o cansaço de um corpo preenchido porque tem a alma completa. somos diferentes dos outros e já me habituei aos olhares de lado, mesmo daqueles que fingem que olham de frente. desgastamo-nos mais depressa porque sabemos ao que sabe um balão cheio de ar, uma boca cheia de chocolate da vida de profissional liberal, vida de artista gente esquisita que basicamente são uns mimados que não sabem o que custa. tontos, sabemos o que custa, mais que todos, mas sabemos ao que sabe quando é bom, e que somos bons. assim te dou espaço às tuas vitórias, porque sei.

não me importo de esperar por ti, gostava de fazer a espera mais produtiva como no ano passado que te desenhei um Corto Maltese para pores na parede. gosto esperar por ti. mais me irritam as esperas por telefonemas que não sei se chegam enquanto definho devagar a cada passa de cigarros baratos neste sítio onde não se faz nada além de ouvir falar mal dos outros.

o ser humano é um animal de hábitos, dizia o outro - lembras-te? - e eu sempre concordei, mas acho que, pelo menos este animal, além de se habituar a quase tudo também tem dificuldade em pensar em habituar-se ou pelo menos a preparar-se para a mudança enquanto ela não vem. e se não vier? troca-se o relógio pelo anel polegar - faz companhia olhar para ti enquanto vejo as horas.

curiosa, esta coisa dos relógios, há uns tempos eram nossos inimigos, mas agora são as noites inteiras que dão gozo. apesar das rasteiras do prazer que o tempo nos prega. dantes, no tempo dos escorregas de areia de São Martinho e das tardes na praceta, então nem os dias nem as férias nem a vida nunca acabavam. agora abranda, a voracidade dos ponteiros, eu sei que é psicológico, mas podia jurar que fazem de propósito, os malandros, agora que não estás, que será mais uma noite de monólogos dialogados interiormente debaixo do mosquiteiro a olhar para a nossa pin-hole iluminada pelo televisor sem som "ó estúpida, dorme antes que o teu corpo dispare em todas as direcções, tu até tens sono, porque é que não dormes. ó estúpida que mania a tua de não gostares de estar sozinha". confesso que me maltrato porque não gosto de mim. mas isso são outros quinhentos e tenho quem me queira e me goste assim muito, tu de longe de voz cansada a bater na vontade de dormir só para enganar a distância metálica do telemóvel, para eu ficar melhor. eu estou bem, eu sei que estou.

a S. hoje vai lá jantar. vai fazer vegetariano para mim, vai-me mimar porque lhe pediste que não me deixe sozinha e ela mima-me e eu adoro-a e adoro-te por teres ultrapassado a minha mania de que tenho de tomar conta dos outros e não tenho de pedir para tomarem conta de mim. vamos comprar courgettes, quem sabe beber vinho tinto, vamos entretecer conversas e fumar cigarros dos baratos com a música a tocar baixinho, de luzes vagas na sala cor de laranja porque nós temos as duas medo do escuro mas assim de palavras dadas sabe bem. ela vem tomar conta de mim, que tento tomar conta dela. ela vem com a sua roupa às cores e a franjinha brilhante, a cara às pintas - como as tuas costas - e o sorriso em riste, apostada em jogarmos ao mimo. hoje não vou esperar sozinha e vou deixar, prometo, que ela me embale e que o vinho me deixe mole para ir pesada para a cama e que seja o que o João - o Pestana - quiser.

e vai ser assim de quentinho, de aconchegado o meu sono porque, sim, tenho amigos que aparecem para acender uma luzinha nas noites em que eu tenho medo do escuro e não contei a ninguém. são dedos seguros a que me vou habituando, a não ter medo de pedir ajuda, como as tuas, como as da S., como aquelas mãos macias que já não estão cá e que tão suavemente - como só elas souberam e as vossas vão aprendendo [agora, que eu deixo] - me faziam festinhas e se deixavam estar presentes só assim, a ver-me cair no sono sem medo - que eu sempre gostei de dormir - vigiando o passeio pelo rio dos sonhos e que só saíam da beira da minha cama muito depois de eu deixar de conseguir dar conta do que quer que fosse porque entretanto já tinha chegado ao cais do outro lado, onde os bichos falavam e eram de cores fortes, como os marretas, os vestidos de princesa e o mercuriocromo nos meus joelhos esfolados.

acabei agora as últimas palavras. acredites ou não começou neste preciso momento uma senhora a cantar fado lá em baixo. aqui. aqui por baixo das janelas com persianas de bambu no prédio amarelo mais feio da Dom Pedro Quinto. as janelas da minha torre - de - marfim - até - telefonema - em - contrário. é fado, sim. daquele sem sílabas, só sons gemidos. é uma senhora que [me] canta de voz trinada e me lembra com uma pontadinha pequenina no coração - que anda meio amachucado - aquela voz que cantava só para mim enquanto lavava a louça e eu, de língua de fora, tentava fazer crochet.

Comentários

Astor disse…
esse gajo é um sortudo! :P

já agora, "e vou por ali fora até quase estar enforcada na minha obra de arte que nunca chegará a ser mais que um semi-cachecol preso a um pau de metal"

AHAHAHAH :P
polegar disse…
astor, a sortuda sou eu.
e fica aqui, só para ti, o prémio "menção honrosa para provavelmente o único gajo que realmente leu este bife" ;)
Rantanplan disse…
Viajei até aos dias de "mercuriocromo nos meus joelhos esfolados". Aqui há dias passei pela farmácia onde ainda trabalha o senhor que todos os dias estava de "prevenção" na praceta (sim, também tive uma praceta) a todos os joelhos que jogavam à bola, andavam de bicicleta e acabavam à porrada, jogo de putos reguilas cheios de bravura no "ringue" empedrado, mas que choravam às escondidas na famácia. Só este senhor é que via esse choro enquanto colocava pensos e cozia cabeças. Enquanto isso, para nos distrair da agulha, ia dizendo, "hoje jogaste em que posição? à defesa? mas olha que eu já vi que és bom a marcar golos...vá, já falta pouco".
Estive lá depois destes anos todos e ainda não foi desta que agradeci ao sr. Nunes. Os nossos pais não se preocupavam pois sabiam que estavamos bem guardados pelo sr.Nunes. Quanto é? "não é nada, vai lá mas é marcar mais um golo.".
Está mais velho mas ainda lá está sempre de olho na praceta. O sr. Nunes ainda é vivo, a praceta é que já não tem crianças a jogar à bola, a marcarem golos, de joelhos esfolados e um sentimento que nos enchia o peito como que a mostrar que o mundo é nosso.
"Se caires vai ter com o sr. Nunes", dizia a minha mãe.
polegar disse…
são os anjos da guarda do quotidiano. os putos (pelo menos os que fomos, os charilas, os que saíam à rua e até esfolavam os joelhos) tinham sempre uns quantos.
eu tinha a Dona Emília dos copos de água. nunca vi uma mercearia com uma conta da água tão grande. isso e pastilhas a fiado.

obrigada, Rantas. muito obrigada por voltares :)

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