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cabo verde



teatro Meridional
até 15 de Dezembro
4ª a 6ª às 22h; Sábado às 17h e 22h
rua do Açúcar 64 - beco da mitra, Poço do Bispo, Lisboa
bilhetes - 10 euros, vários descontos.

eu não dava para crítica de teatro. ia ser acusada de ser amiga deste e do outro. de ser uma vendida a certas companhias.

chega-nos uma compilação de textos de autores caboverdianos. prosa, verso, música.
uma actriz, um músico. isolados numa ilha de caixas de madeira, uma enorme lua de papel e um espanta-espíritos para deixar aproximar apenas as almas boas.
ele faz mar com arroz. ela faz um povo com o corpo.
começa com "deus abençoa este espectáculo". e parece que sim, que há uma qualquer força que deixa que cada som, cada palavra e gesto saiam abençoados e contagiem todas as pessoas ali sentadas.
são histórias. são coisas pequeninas, gestos de um quotidiano, de um imaginário - bem real - que ali se nos apresenta. são símbolos reconhecíveis por todos, são pequenos contos que lemos como num livro em que as letras são o rosto de Carla Galvão, as páginas onde se deitam são os sons de Fernando Mota.
nada ali há mais do que uma interpretação pura, intensa, verdadeira, um fabuloso trabalho de equipa em que os pormenores são tão pequeninos mas contam tudo. nada parece marcado, nada tem só forma. é num rosto iluminado, afogueado, que de repente quebra em mil rugas, num corpo que passa de uma dança frenética à fragilidade digna da velhice que nos sentimos apresentados à essência de todo um país.
são histórias de pessoas, que se nos transmitem com essa mesma franqueza, e não é Dezembro em Lisboa,não está frio, não há trânsito, há peles escuras, há um tempo lento, há passadas dengosas, há "sodade", há mornas, há cachimbos e todo o mundo dos adereços num lenço.
é um estudo de pessoas, feito com alma. em cada poro há vida e sinceridade. em cada som há um ambiente, uma emoção. uma hora assim, colada à cadeira, em total assombração, em completa devoção.
sabem aqueles momentos que são tão bonitos que nos dão vontade de chorar?
saí de lá abazurdida. o corpo dorido como se tivesse apanhado uma tareia. e a voz incapaz de verbalizar o que me ia na alma. ainda agora, não consigo fazer qualquer comentário inteligente, digno de nota.
só posso agradecer.
e dizer: vão ver.

Comentários

MPR disse…
Genial... como sempre...
elisa disse…
Que triste fiquei de não viver em Lisboa:(
Beijinhos polegarzinho
polegar disse…
mpr: já não espero outra coisa e no entanto sou sempre surpreendida... são estas pessoas que merecem toda a admiração do mundo :)

elisa: eles fazem bastantes digressões. vai estando atenta ao site deles e pode ser que eles passem pelos teus lados ;)
Daniel Aladiah disse…
Querida Polegar
Parabéns, atrasados.
Festas felizes, adiantadas :)
Um beijo
Daniel
Sónia Balacó disse…
Saí do espectáculo a sentir o mesmo que todos os actores que estavam na plateia: é impossível ser-se assim tão bom! Esta senhora é qualquer coisa do outro mundo.

(By the way: um bisou, senhora da guitarra da Kitty*)

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