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polegar no cinema português

hoje foi o dia da "rodagem da cena com deixas". o nervoso miudinho ainda não tinha acordado, já eu tinha gravado. é que o despertar foi às 6 da manhã, entenda-se. chegar, comer uma sandocha, maquilhagem, cabelos, troca de mimos com o ex-patrão no cigarro da espera ["você nem imagina as saudades que eu tenho de si, minha cara", disse-me ele, e eu de lágrima de crocodila - oh - que - peninha - que - saudades - tenho - eu - do - escritório - e de - sua - azia - matinal quase quase a rolar-me pelo rosto se não fosse a pintura poder esborratar]. em bela diva meio acabada vou ao guarda-roupa e lá está o meu fardamento de criadinha insular do século passado antes do século que já é passado mas que eu não me habituo. vestidinha a preceito, já temos a perfeita mulher do campo, delicada mas vigorosa, com rosetas fornecidas pela secção das pinturas, e só me lastimei de não ter deixado crescer a sobrancelha-monocelha para ficar mais autêntico. e de não me deixarem fazer a coisa como deve ser, com sotaque madeirense...

a actriz principal terá uma cena comigo. mano a mano, só as duas. não, não me enganei. explico: é uma questão de me mentalizar que ainda sei fazer isto. portanto: a cena é minha. ela só participa. quero lá saber que o filme seja praticamente só com ela.
a moça, ainda mais franzina que eu, com o seu ar delicadíssimo, o pacote todo, pele transparente, mão trémula e olhar de eterno tédio, fastio, oh inclemência, recordou-me alguém, mas rapidamente afastei esse pensamento quando ela me abriu um sorriso e calorosamente me pegou na mão num cumprimento mais que de ocasião.

sei ao que vou: é cinema português. leeeento. planos looongos do género "mas - porque - é - que - esta - pessoa - não - se - dedica - à - fotografia?". um realizador muito querido, mas bipolar. ora está todo doçuras a dirigir as actrizes, ora está aos berros com a luz. boa luz vai ter, de certeza... só em ensaio muda-me a marcação umas 5 vezes. lá ando eu de trás para a frente, de roupa de época e um blusão de penas para não morrer de frio. lá se decide e pôem-me a fitinha no chão [sim, sim, é tudo batota, somos meros fantoches e, quando muito, Marretas]. imediatamente a seguir resolvem mudar o tapete de sítio. que era onde estava colada a fitinha. e quando volta a fixar a marcação, muda a outra moça de sítio. quando vai para gravar, afinal já não posso estar ali porque fico sem luz [sim, houve gritos de "porque é que a polegar não tem luz, carago" e tudo]. lá se orientam e eu em minha bonacheirice troco olhares divertidos com a minha parceira de cena. ela vai à maquilhagem a correr tirar uns rolos da cabeça e de caminho pega-me na mão e diz-me meio segredando que eu que não tenha receio, que o realizador grita muito mas não é nada. eu respondo a rir que já o conheço e que não me incomoda nada. e de facto não incomoda mesmo. siga para o plateau, já sem rolos e sem casacos. conseguem finalmente tirar do plano o assistente de decoração que anda há horas de rabo para o ar a limpar abnegadamente o chão com Pronto. vamos filmar.

"som!" berra o realizador
"som pedido!" berra o assistente
"'tá a andar!" responde o técnico
passa um camião
ouve-se um "'dasssssse" sumido
o perchista levanta a respectiva... perche
o assistente diz lá aquelas coisas com a claquete em frente à câmara "cena 30 primeira" e assim.
esperamos
esperamos
passa outro camião
"dasse"
esperamos
"acção!" berra o realizador
e lá fazemos. e refazemos, porque passam muitos camiões. e porque a moça levanta demasiado o cotovelo e me tapa a luz ["a luz da polegar, carago, filha, tem paciência, tens de baixar o braço"]. e porque eu falho a marca duas vezes [give me a break, eu estou com uma enorme saia rodada, vou a medir a coisa só com visão periférica e tenho de adivinhar se estou com o pé em cima da marca, à frente da marca, atrás da marca. isto, senhores, é uma ciência milimétrica]

corre bem, parece que estou dispensada. mas não. afinal querem que eu entre em mais uma cena, depois do almoço. porque, e cito, "isto criadagem de qualidade não se arranja assim do pé para a mão e portanto é melhor continuarmos com esta". ena pá. assim almoço à borla.
e fico na mesa dos actores e tudo, com o realizador à minha frente a roubar-me bacalhau com natas. que isto é assim.

e descubro que a cena que tenho à tarde é com um velho habituée dos décores portugueses, e meu velho habituée - dor - de - cabeça dos tempos de produtora - actriz no Mosteiro dos Jerónimos. isto vai ser interessante. pedem-me que lhe faça um ar de comiseração. e pronto, é a galhofa. porque, enquanto esperamos para ensaio, eu digo-lhe o meu subtexto em madeirense. e faço-lhe um olhar de comiseração de que não se há-de esquecer tão cedo. e depois gravamos. passam poucos camiões depois da hora do almoço.

tenho uma pequena surpresa: no fim da cena, sai de lá um berro do realizador:
"a polegar terminou hoje, obrigado minha querida, salva de palmas para a polegar!"
e bateram-me palmas e tudo, como se faz aos actores que não vão só fazer figurações especiais. fui cine-baptizada.

e pronto, antes de despir a personagem [sim, até fui vestida de sopeira-antiga para o restaurante], faço à socapa mais um recuerdo para a M. e acabo por ter uma participação especial do meu colega de olhares.
aqui têm, o meu mais recente contributo, a obra "criada em auto-violação triste e solitária até que patrão se apercebe e resolve dar uma mãozinha em trágicos":



foto de espanta-espíritos, montagem à pressa por polegar

Comentários

elisa disse…
Uau que emoção:)!
Parabéns
MPR disse…
IQUIBOM! Parabuenes! Afinal a moça berrou ou não berrou hein? - até engraçaste com ela, sua má-lingua, só arranjos amigos com veneno! ;)
intruso disse…
eheh
Parabens pelo cine-baptismo!


[as descrições e a ironia, delirantes,,, como sempre]
:)
polegar disse…
elisa: grazie mille. foi só uma coisinha pequenina

mpr: as opiniões negativas tinham a ver com outros aspectos, como bem sabes. e isso dos amigos venenosos não é comigo de certezinha...

intruso: obrigada :) e ainda bem que gostaste. uma pessoa esforça-se eheh

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