Avançar para o conteúdo principal

quando o inverno chegar

São Luiz Teatro Municipal
7 a 30 de Junho às 21h; Domingo dia 24 de Junho às 17:30 (sessão com interpretação em língua gestual portuguesa)
Encenação: Marco Martins
Texto: José Luís Peixoto
Interpretação: Beatriz Batarda, Dinarte Branco, Gonçalo Waddington, Nuno Lopes
Telefone: 21 325 7640

O mundo fechado de um sanatório para problemas respiratórios no virar do século XIX é o espaço da vida suspensa de 3 homens. O mundo ali não vive, “a vida é lá em baixo, na planície”. Mas será que querem realmente viver? As rotinas já estão instituídas, os dias estão demarcados em coreografias compassadas, confortáveis, onde a esperança e a mudança são apenas palavras distantes. Uma estranha cumplicidade entre os três, alicerçada em relações de liderança insondáveis, coordena-lhes os passos vagueantes por entre a floresta que circunda a instituição. Até que encontram uma espécie de “Alice”. Figura feminina, ingénua e frágil em pleno precipício emocional, numa absurda procura de algo que não se sabe bem se será. Parece que caiu do lado errado de um espelho estilhaçado, onde o ar da montanha lhe tolheu – também a ela – a vontade. Esta figura meio tonta pode abalar os passos rotineiros, as improbabilidades, a estrutura das relações destes homens e dar um sabor agridoce - nem sempre conveniente - aos seus passeios pelos bosques. Porque pode fazer cair as máscaras.

O bosque – outro protagonista – é frondoso e musicado. Uma estrutura imponente, um labirinto de árvores, o chão coberto de galhos e folhas que crepitam com o andar e uma luz bucólica inserem-nos no mais improvável cenário. Para mim, lindíssimo.

O elenco masculino, confesso, foi o meu canto da sereia. E não me desiludiu. Nuno Lopes, Gonçalo Waddington e Dinarte Branco numa perfeita esgrima de palavras e sentimentos, roçando os bonecos sem nunca serem marionetas sem vida. Num equilíbrio precário mas perfeitamente dominado, Gonçalo Waddington é de uma força intensa mas não imposta; Nuno Lopes é um ex-boémio cândido e matreiro; Dinarte o doce zé-ninguém subestimado. Mas, repito-me, não são bonecos. Nunca deixamos de sentir que são mais do que aparentam, têm muito mais a revelar-nos. E é neles que suspendemos a respiração, é neles que viajamos na sua demência.

Não posso falar bem de Beatriz Batarda, lamento. Se plasticamente me deliciou a sua “Alice” – Lena –, não me mostrou nada para além de um boneco vazio de intenções. Monocórdica, com uma entoação demasiado “agudinha” e falsa [especialmente a comparar com os seus colegas], movimentos lentos e marcados como se de um boneco – de – corda – sem – corda se tratasse, e um registo de voz que não lhe permite fazer mais do que o mesmo, ela não me transmite a menina-mulher frágil, algo tonta mas tortuosa. Resume-se a uma “coisa” básica, oca e bacoca, de que[m] tenho dificuldade de ter pena. Pode-se ser burrinha mas muito querida. Mas para se ser querida, temos de o sentir. Não senti nada vindo daqueles lados. Excepto uma vaga irritação. No único momento em que a emoção tomou conta dela, a voz caiu e a “personagem” desfez-se. Depois recuperou-as – à voz e à “personagem” – e perdeu de novo a emoção, que tão bem nos daria murros no estômago – e me poria a chorar copiosamente – se ela deixasse que lhe ocupasse o corpo e as cordas vocais. Uma pena.

O texto, não sendo brilhante, tem momentos de diálogos absolutamente deliciosos, roçando o irreal – surreal – absurdamente – Becketiano. Aí somos levados pelo riso e pela suspensão da realidade. As histórias das personagens são interessantes e a forma como se entrelaçam também. Mas o enredo é um compasso de espera demasiado grande. Encerra certas “revelações” finais que tomam o tom de novela mexicana, completamente desnecessárias. O texto tem momentos mágicos misturados com outros mastigados e repetitivos, provavelmente desvantagens de se lidar com o “autor vivo” – a eterna hesitação do corte.
A encenação é, quanto a mim, o ponto mais fraco deste espectáculo. Talvez demasiado cinematográfica – no mau sentido, no sentido do tempo arrastado. Muitos tempos mortos, muitas transições lentas, uma orquestra e uma cantora lírica – no meio da palha - que não me enchem as medidas porque me parecem desnecessários e, ouso dizer, quase elitistas. Movimentações demasiado rígidas, a tal repetição e mastigação de texto e um porquê tão grande de se estar com a cadeira marcada no rabo se isto tinha tudo para correr tão bem... E, se houve direcção de actores, como é possível fazer as opções que criam um tão grande hiato entre os três personagens masculinos e a estranha boneca vazia que é a mulher? Pretende-se, este contraste? Lamento, a meu ver não resulta. Esvaziando uma personagem de sentidos, fazendo-a papaguear um texto que não vive, como se pode acreditar que emociona e altera as vidas de outros, que têm tanto conteúdo, que vivem a cada gesto?

Um reparo acerca do público: estavam mais tísicos que os tuberculosos em cena.

Gostei. Mas saí de lá com um gosto amargo na boca.
Suspiro.
Repetiria, sim, num absurdo instinto algo masoquista, só para pedir de novo àquele trio que me leve para o bosque e me ensine a fazer magia com palavras.

Comentários

intruso disse…
...na próxima semana... quero muito ver!
(leio a "crítica" depois de ir...)
:)

[tudo parece prometer bastante;
actores, texto, cenografia... a ver vamos...]
pinky disse…
hummmmmm...não convenceu muito, tirando o trio de actores...será que vale a pena?
polegar disse…
intruso: vai, vai, e depois vem cá "discutir" comigo. :)

pinky: uma crítica não passa de uma opinião. a magia do teatro é [também] chegar de formas diferentes a diferentes pessoas. pode ser que gostes... ;)
Manel disse…
Eu confesso que detestei. :p Bom, vou tentar explicar-me sucintamente. Temos actores muito bons, a mostrarem como são bons. Eu tive, sinceramente, a sensação da marioneta. Cada um tem os seus momentos de malabarismo, mas para ver malabarismo vou ao circo. O Gonçalo Waddington é um actor fantástico, e o Nuno Lopes tem uma energia e um instinto invulgares, mas o único que me tocou foi o Dinarte. Porque o seu malabarismo específico é ser profundamente humano e entregue, e nas cenas em que é preponderante quase que acreditei que me podia deixar levar pelo espectáculo. Mas era sempre mentira. Em relação à menina Lena da Beatriz Batarda, infelizmente não poderia estar mais de acordo contigo. E sinceramente, estou bastante cansada de ver mulheres-vítima. Parece que não há mais nada para se mostrar num palco, caraças. Desvitimização, já!

O texto, pelo que sei, foi construído a partir de improvisações dos actores. Se calhar são demasiados umbigos para um texto só. Mas isto sou eu a especular. A direcção de actores é inexistente e quanto à encenação, novamente estou de acordo contigo. Aliás, lembrei-me imenso de um post teu, cheguei a pensar que se tivessem pejado o telhado do sanatório de gajas nuas, talvez a coisa se passasse melhor.

O cenário é absolutamente maravilhoso. Mas não se passa três horas numa sala de teatro para olhar para um cenário...


E foi por tudo isto que me abstive de fazer uma crítica no Blue!. Obrigada pelo teu post, que me deu oportunidade de a fazer aqui. ;)
polegar disse…
Manel: pois, é uma desilusão, e frustra porque tinha muito para dar certo.
Eu gostei de todos os actores, mas percebo o que dizes quanto ao Dinarte. less is more. ;)

quanto à Beatriz Batarda, além da vitimização, foram as opções tomadas para interpretar essa vítima. é uma pessoa tonta, mas torturada. tem de ser amorfa? credo, não há paciência. há aí tanta actriz (das de renome e tudo) com capacidade para fazer qualquer coisinha melhor, com mais sumo...

isso das gajas nuas era capaz de funcionar, se bem que presenciámos o privilégio de, numa peça em que entra uma mulher, quem se despe é um homem! palmas, palmas! ;)))

quanto ao texto, como surgiu não sei, mas nota-se o precipitar forçado da coisa no fim, quando durante 3 horas andámos às voltas com mais do mesmo.

fazes bem em não te meteres em críticas... eu ainda há pco tempo continuava a receber umas quantas mensagens azedas relativamente a um post acerca do Meridional! há gente inflamadíssima, que anda à procura de bulha e não percebe que cada opinião é só isso, uma opinião...
espantaespiritos disse…
concordo em tudo mas acrescento uma crítica à luz. estava demasiado virada para os espectadores em algumas cenas. eu sei que sou miope e sofro de astigmatismo, e sim a luz incomoda-me mais que aos outros... mas não havia necessidade.
parabéns pela crítica... :)
Manel disse…
Nem mais, less is more. ;)
colher de chá disse…
vou reiterar tudo o que escreveste. parabéns pela crítica tão equilibrada, tens jeito para isto, pá! ;)

estive lá ao teu lado a vibrar com aquele trio mágico, só por eles voltava de novo. mas só por eles.

um beijo
Daniel Aladiah disse…
Parece que não partiu ainda...
Um beijo
Daniel
pepper disse…
não poderia concordar mais. saí fascinada pelo trio e encantada pelo cenário, cujos detalhes me ocuparam os olhos nas repetições vazias e no oco de uma "lena" que me irritava profundamente. excelente crítica.
:)
intruso disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
intruso disse…
...eu li agora o post, depois de ter visto a peça...
e não consigo deixar de discordar, quase em absoluto
:)

Achei a peça (como um todo e pelas diferentes partes) brilhante;
Não dei pelo passar do tempo, suspenso no excelente texto (com diálogos entre o absurdo, o cómico e o trágico, ao qual retirava apenas parte das “revelações” finais)
As interpretações são tocantes(igualmente interessantes, em registos expressivos muito diferentes o que fez para mim todo o sentido), a cenografia é genial(das que mais gostei do J.mendes ribeiro, cujo trabalho admiro), a música é excelente (a cantora lírica seria de facto prescindível ou poderia ter menos intervenções/ou em momentos mais precisos). Achei a encenação belíssima (plasticamente perfeita e com um sentido de ocupação do palco/espaço no qual os actores brilhavam enquanto corpo-figura, gesto-palavras...)

Confesso que fiquei preocupado depois de ler o post e os comentários tão consensuais…
Fico a pensar que realmente não percebo nada do assunto (e não percebo mesmo), mas de facto como espectador tenho que ser sincero: há muito tempo que uma peça não me “enchia tanto as medidas”…

[…gostei muito da “Lena”… talvez mesmo a interpretação que mais me impressionou... complexa e ambígua, entre o boneco, a crinaça e a mulher, personagem-grafica e emocional, com uma atenção perfeita aos pormenores, do olhar à forma como as pernas e a postura a desenhavam, até aos pés e modo como estavam e mudavam dentro daqueles sapatos ridiculos...
e os momentos finais da primeira parte foram muito bons… a sala em suspenso/arrepio colectivo……………………………………... como não via/sentia há algum tempo numa sala de teatro;
talvez lhe tenha corrido bem naquele dia, não sei]


p.s.
[gostei, "prontos"...]
:)

bj
intruso disse…
[e não vi a vitimização da mulher Lena ali, em particular...
todos_ ou quase_ me pareceram vítimas... e "carrascos", tb de si próprios...]
polegar disse…
oh querido intruso! replica sempre, critica sempre, discorda sempre.
gosto de pontos de vista diferentes, se inteligentes e coerente... ;))

e não te sintas estúpido. somos todos pessoas, somos todos público. nada mais.

Mensagens populares deste blogue

take me away

uma música triste de Silence 4, uma balada doce de Lifehouse... o estado de espírito desta quarta feira. vou-me embora. por alguns dias, vou-me alhear do mundo. desta vez a redoma é minha. pegar no carro e ir. fazer-me à estrada. com destino marcado a vermelho no mapa, para uma despedida em grande. depois, logo se vê. vou poder descansar. a cabeça [das ansiedades], a máquina [que anda outra vez aos saltos], o corpo [fraco e dorido]. mas acima de tudo, vou poder ser. sorrir quando realmente me apetecer. chorar se e quando me apetecer. vai ser um fim de semana prolongado de apetecimentos.

o duende feliz

não, não é nenhum post acerca do nosso amigo linkado aqui ao lado, esse mestre dos contos e das fantasias... se bem que merecia... é que recebi uma prendinha de Natal e pude voltar às dobragens... algures nesta quadra [ergh, detesto esta palavra] passará na TVI o filme de animação "O Duende Feliz", ou "The Happy Elf". a Molly sou eu. [não tem que enganar é a miúda cuja primeira cena se passa a apedrejar o dito Duende, o Eubie... eheheheh] e também sou eu [kind of] que abro o filme, com a Irmã... esta não tem nome próprio, mas é a ela e ao irmão [que ela entretanto transformou em árvore de Natal à pancada] que se vai contar a história do Duende. sim, sim, calharam-me as miúdas reguilas e ainda por cima as duas dentro da mesma faixa etária... e agora fazer duas vozes distintas...? seria cantado pelo Harry Connick Jr. [essa maravilhosa voz que me persegue com a banda sonora de When Harry Met Sally] mas agora deve ser o Quim Bé a cantar... também não está mal... tu, jov

q.b. de q.i.

como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid