Avançar para o conteúdo principal

numero 87

ao fundo dos degraus de madeira já gasta dos passos uma porta de madeira e vidro. mais dois degraus, de pedra, um pouco mais largos, para o passeio. no segundo, de pés direitos assentes na calçada, sentava-se aquele homem. todos os dias, à mesma hora. de roupa tão neutra que não se conseguia descrever. não marcava por ser de um estilo, ser velha, nova, escura, colorida, quente ou fresca. o rosto era talvez monocromático. sem nada que o descrevesse ou tornasse único, aos olhares esquivos dos muitos que ali passavam. invisível como os passos que marcavam as pedras dos degraus, uma parte do degrau, talvez, que ocupava. uma parte da fachada do edifício que lhe servia de moldura. estático, como uma gárgula de carne e nervos desfocada da erosão dos dias. ficava direito, as costas largas apoiadas no vidro. um contraste de sombra perfeitamente delineado na luz errante do meio da tarde. poder-se-ia jurar que deixara já queimado no vidro esse seu contorno das costas. as mãos, nem curtas nem compridas, nem bonitas nem feias, nem peludas nem lisas, nem enrugadas ou jovens - assentes nos joelhos com uma precisão simétrica. ficava. estava. fantasma quieto das pedras. parecia aguardar. esperar por alguém. por vezes quebrava essa quietude com um gesto seguro em que os dedos da mão direita se esgueiravam para o tal casaco sem descrição e tiravam do bolso um cigarro. sem maço. e um fósforo. sem caixa. entre o indicador e o médio o cigarro levado aos lábios. entre o polegar e o anelar prendia o fósforo. depois fechava os dedos em torno do pauzinho e raspava-o rapidamente na pedra do degrau. a faísca e a chama, o puxar do primeiro bafo, a primeira nuvem de fumo. os dedos recolhiam ao bolso, largavam o fósforo queimado, retornavam ao joelho. e ali ficava. a deixar a nicotina desfazer-se em cinza entre os lábios, consumindo o único ar que parecia dar-lhe forma aos pulmões. e o único cheiro que o distinguiria, o do fósforo queimado, esvaía-se nos ventos, jacarandás, perfumes, suores, vozes, roçares de casacos.
não parecia reconhecido aos raios de sol quentes ou desagradado ao vento frio ou à chuva. estava. o momento em que se levantava, ninguém nunca se dera ao trabalho de contar. apenas que quando desciam as escadas, ele já lá não estava. onde ia, também não se questionavam. os outros.
dizia um condutor da carris que às vezes, em descendo a calçada ao fim da tarde, se ouvia um homem murmurar, sentado na caixa verde de metal do fundo do elevador - se era o mesmo não se sabe mas era também anónimo demais para se desenhar um maxilar ou apenas um esboço de expressão. parecia gemer e chorar. mas o rosto permanecia assim. igual. nunca lhe perguntou se chorava ou se falava apenas com as vozes da cabeça. nunca lhe perguntou como, apesar do rosto sintético e gemidos estranhos, comprava o passe todos os meses, acto tão corriqueiro. também nunca lhe perguntaram onde comprava tabaco e os fósforos. se a menina que lhos vendia lhe conhecia a cara ou também a fixara por ser a única impossível de fixar.
no dia em que desistisse de esperar, o relevo na pedra teria já abraçado a forma do seu sentar?

Comentários

Anónimo disse…
tenho uma teoria estranha que todas as pessoas deixam marcas no mundo.
nas pedras do chão, nos sitios que tocam.
aquelas marcas de uso nos talheres, no telemovel, que se acumulam e se chamam riscos.
é disso que estou a falar.
esse senhor concerteza que deixa a sua marca.
por muito anónimo que seja.
Anónimo disse…
que bonito... obrigada :)
Anónimo disse…
Do que é que ele está à espera?
Passam por nós todos os dias pessoas mais-ou-menos: mais-ou-menos bonitas, mais-ou-menos simpáticas, mais-ou-menos felizes. E nunca nos viramos para trás para olhar de novo.
Do que é que ele estará à espera...

O senhor espanta-espiritos fez-me pensar. É disso que eu estou à espera, há muito tempo à espera. De deixar marcas na vida...
Anónimo disse…
:)

Mensagens populares deste blogue

take me away

uma música triste de Silence 4, uma balada doce de Lifehouse... o estado de espírito desta quarta feira. vou-me embora. por alguns dias, vou-me alhear do mundo. desta vez a redoma é minha. pegar no carro e ir. fazer-me à estrada. com destino marcado a vermelho no mapa, para uma despedida em grande. depois, logo se vê. vou poder descansar. a cabeça [das ansiedades], a máquina [que anda outra vez aos saltos], o corpo [fraco e dorido]. mas acima de tudo, vou poder ser. sorrir quando realmente me apetecer. chorar se e quando me apetecer. vai ser um fim de semana prolongado de apetecimentos.

o duende feliz

não, não é nenhum post acerca do nosso amigo linkado aqui ao lado, esse mestre dos contos e das fantasias... se bem que merecia... é que recebi uma prendinha de Natal e pude voltar às dobragens... algures nesta quadra [ergh, detesto esta palavra] passará na TVI o filme de animação "O Duende Feliz", ou "The Happy Elf". a Molly sou eu. [não tem que enganar é a miúda cuja primeira cena se passa a apedrejar o dito Duende, o Eubie... eheheheh] e também sou eu [kind of] que abro o filme, com a Irmã... esta não tem nome próprio, mas é a ela e ao irmão [que ela entretanto transformou em árvore de Natal à pancada] que se vai contar a história do Duende. sim, sim, calharam-me as miúdas reguilas e ainda por cima as duas dentro da mesma faixa etária... e agora fazer duas vozes distintas...? seria cantado pelo Harry Connick Jr. [essa maravilhosa voz que me persegue com a banda sonora de When Harry Met Sally] mas agora deve ser o Quim Bé a cantar... também não está mal... tu, jov

q.b. de q.i.

como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid