Avançar para o conteúdo principal

ela aos sabados de manha


[ms]

nalguma poça mergulhava o pente. desdentado. alisava o cabelo à força de cuspo, empurrava-o, prensava-o de mãos decididas para o que no espelho de águas turvas e folhas secas acreditava ser o seu lugar. depois ajeitava o xaile e seguia para a igreja. na barriga sempre uma irrequietação. esperava. observava as emoções sempre iguais. os ciumentos, os jocosos, os beatos, os orgulhosos, os divertidos, os ansiosos, os enfastiados. mas ela mantinha-se à sua distância de cheiros azedos e sussurros ininteligíveis. falava consigo, à flor da pele. esperava pelo branco que lhe turvasse os olhos e os farrapos em cintilantes gotas de fantasia. os fantasmas chegavam, um a um. desfilavam pelo corredor de tapete vermelho. ouvia a música. a banda sonora de outras vidas diluía-se no ritmo badalado no seu peito, das suas cantigas. levantava o pescoço e fechava com força os dedos nos galhos secos. no cetim feito teia de aranha de um laço de fios chorões. os seus passos haviam deixado de fazer diferença nos ecos. assim a luz a recortou para logo a fundir nas paredes de pedra. um único olhar lá do fundo reconhecia-a para passar a ignorá-la, dirigindo-se de novo a quem de facto existia. mas na sua mente nada disso fazia realidade. seguia direita ao seu desejo, ao semblante nublado que só ela reconhecia entre o cal, os santinhos e os azulejos. no seu desfile delicado nem o soçobrar dos folhos murchos conseguia penetrar a redoma da sua verdade. embrulhava-se no véu do odor forte das velas, da cera derretida de tanta promessa, dos pedidos e das vãs esperanças, que perscrutava de olhar indiferente. as promessas já tinham morrido e ainda não sabiam, os infelizes. depois de contar as novas chamas sentava-se de joelhos juntos e olhos brilhantes, atenta à homilia. sussurrava de cor as juras lá do fundo. eu a ti, tu a mim. pertenço-te e és meu. esmagava mais um pouco o ramo morto na ansiedade do beijo, o beijo no vácuo. o mesmo vácuo das noites de núpcias que lhe rasgava as veias em sonos ausentes. depois a vaga. de soluços num silêncio esmagador, quando a trovoada de sons e arroz a deixava em paz, os ecos abrandavam e os aleluias cessavam.
tirava o lenço bordado da manga e limpava os olhos. porque uma noiva não pode esborratar o rímel.

Comentários

Anónimo disse…
Muito, muito bom. Ia dizer que me parecia longo demais a certas alturas mas aquele final silenciou-me para sempre. Divino. Amei.
Anónimo disse…
uma noiva não pode...

(belo texto)
:)
Anónimo disse…
tocante, maravilhoso, adorei!
Anónimo disse…
Que arrepio, que lindo. Parabéns. *

Mensagens populares deste blogue

take me away

uma música triste de Silence 4, uma balada doce de Lifehouse... o estado de espírito desta quarta feira. vou-me embora. por alguns dias, vou-me alhear do mundo. desta vez a redoma é minha. pegar no carro e ir. fazer-me à estrada. com destino marcado a vermelho no mapa, para uma despedida em grande. depois, logo se vê. vou poder descansar. a cabeça [das ansiedades], a máquina [que anda outra vez aos saltos], o corpo [fraco e dorido]. mas acima de tudo, vou poder ser. sorrir quando realmente me apetecer. chorar se e quando me apetecer. vai ser um fim de semana prolongado de apetecimentos.

q.b. de q.i.

como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid

o duende feliz

não, não é nenhum post acerca do nosso amigo linkado aqui ao lado, esse mestre dos contos e das fantasias... se bem que merecia... é que recebi uma prendinha de Natal e pude voltar às dobragens... algures nesta quadra [ergh, detesto esta palavra] passará na TVI o filme de animação "O Duende Feliz", ou "The Happy Elf". a Molly sou eu. [não tem que enganar é a miúda cuja primeira cena se passa a apedrejar o dito Duende, o Eubie... eheheheh] e também sou eu [kind of] que abro o filme, com a Irmã... esta não tem nome próprio, mas é a ela e ao irmão [que ela entretanto transformou em árvore de Natal à pancada] que se vai contar a história do Duende. sim, sim, calharam-me as miúdas reguilas e ainda por cima as duas dentro da mesma faixa etária... e agora fazer duas vozes distintas...? seria cantado pelo Harry Connick Jr. [essa maravilhosa voz que me persegue com a banda sonora de When Harry Met Sally] mas agora deve ser o Quim Bé a cantar... também não está mal... tu, jov