por um mar agitado de tormentas em olhos que deviam já ter a serenidade do profundo oceano que espelham.
no entanto, andavam perdidos entre jacarandás, num fim de tarde lilás e azul como os tais olhos.
foto de espanta-espíritos
as mãos apertavam-se de desamparo, medo, incredulidade. camisa branca de manga descosida alinhavada à mão, um anel de prata gasta e nada mais. nem carteira, nem mala nem algibeira onde as levar. cheirava a colónia de bebé.
chamemos-lhe Clara.
Clara vagueva. simplesmente.
o seu cheiro chegou ao banco de jardim com os olhos marejados de vergonha e desprotecção. a pele macia enrugada tão branca trouxe o rosto da minha avó. a voz tremida e hesitante trouxe histórias tristes, tristes, injustas, tão fora de tempo. já não devia ser tempo de viver assim. Clara, idade indefinida pelas marcas do rosto e poucos cabelos brancos, fugiu de casa. não digo porquê, não vale a pena. Clara perdeu tudo. porque largou tudo porque lhe tiraram tudo. não tinha mais nada, não tinha ninguém. precisava de um refúgio que preferia não ter de pedir.
estampado na cara o medo. de tudo. de não ter, não ser, não poder, não saber. de as palavras lhe serem levadas pelo vento perfumado de jacarandás e colónia de bebé antes de chegarem. de as palavras não chegarem.
depois o abraço. agradecido, desamparado, aflito. num segundo chorava abertamente, desconsolada, consolando-se em ombros pequenos demais para tanta tristeza.
o beijo na testa. o olhar macio e dorido saindo de si, apesar da dor, para beijar. para cuidar. com uma benção afastou-se. não antes sem aconselhar cuidado, e dizer que a sua alma ficava ali. sempre mãe, eternamente mãe era Clara.
"depois de mortos não se vive. se estivermos vivos, podemos sempre viver de outra maneira".
com Clara chorou-se, sem vergonha.
por Clara chorou-se. por Clara rezou-se uma prece de amparo. por Clara acenderam-se três velinhas pequeninas como as mãos de seda enrugada de Clara.
que os ventos quentes a tenham entregue no seu porto seguro. que os ombros pequenos sirvam de algum aconchego até lá chegar.
no banco ficaram as lágrimas de Clara e não só as de Clara. nas roupas ficou o cheirinho de Clara.
boa viagem.
no entanto, andavam perdidos entre jacarandás, num fim de tarde lilás e azul como os tais olhos.
foto de espanta-espíritos
as mãos apertavam-se de desamparo, medo, incredulidade. camisa branca de manga descosida alinhavada à mão, um anel de prata gasta e nada mais. nem carteira, nem mala nem algibeira onde as levar. cheirava a colónia de bebé.
chamemos-lhe Clara.
Clara vagueva. simplesmente.
o seu cheiro chegou ao banco de jardim com os olhos marejados de vergonha e desprotecção. a pele macia enrugada tão branca trouxe o rosto da minha avó. a voz tremida e hesitante trouxe histórias tristes, tristes, injustas, tão fora de tempo. já não devia ser tempo de viver assim. Clara, idade indefinida pelas marcas do rosto e poucos cabelos brancos, fugiu de casa. não digo porquê, não vale a pena. Clara perdeu tudo. porque largou tudo porque lhe tiraram tudo. não tinha mais nada, não tinha ninguém. precisava de um refúgio que preferia não ter de pedir.
estampado na cara o medo. de tudo. de não ter, não ser, não poder, não saber. de as palavras lhe serem levadas pelo vento perfumado de jacarandás e colónia de bebé antes de chegarem. de as palavras não chegarem.
depois o abraço. agradecido, desamparado, aflito. num segundo chorava abertamente, desconsolada, consolando-se em ombros pequenos demais para tanta tristeza.
o beijo na testa. o olhar macio e dorido saindo de si, apesar da dor, para beijar. para cuidar. com uma benção afastou-se. não antes sem aconselhar cuidado, e dizer que a sua alma ficava ali. sempre mãe, eternamente mãe era Clara.
"depois de mortos não se vive. se estivermos vivos, podemos sempre viver de outra maneira".
com Clara chorou-se, sem vergonha.
por Clara chorou-se. por Clara rezou-se uma prece de amparo. por Clara acenderam-se três velinhas pequeninas como as mãos de seda enrugada de Clara.
que os ventos quentes a tenham entregue no seu porto seguro. que os ombros pequenos sirvam de algum aconchego até lá chegar.
no banco ficaram as lágrimas de Clara e não só as de Clara. nas roupas ficou o cheirinho de Clara.
boa viagem.
Comentários
Beijos e votos que Clara consiga a rumar a um porto seguro
bjs
no entanto, é aquela sensação de revolta porque a Clara devia estar a passear os netos no parque... além disso, apanhei-a no momento do embate. é quando é mais complicado. beijo
sande: bem, se calhar por sermos do mesmo signo do mesmo ano, estamos no mesmo comprimento de onda...? ;) a solidão é tramada, sim. é uma batalha constante para conseguir equilíbrio. mas concordo contigo: a solidão de Clara é devida a um sofrimento demasiado... injusto. naquela tarde relativizei muita coisa. e a generosidade dela no meio de tudo ainda me emocionou mais.
deixou o cheiro a colónia, o toque macio da pele e a imagem da roupa cosida à mão.
uma mulher orgulhosa a quem "nunca lhe tinha acontecido aquilo...
desapareceu no meio da multidão mas não da memória e do coração.
que estejas bem Clara.
tu mereces.