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saldades

pouso as chaves, o leitor de mp3 e o livro no cantinho da secretária. sento-me, puxo o maço de tabaco para perto do computador. antes que cheguem os outros, o primeiro pedacinho da manhã é meu. entro no messenger e uma janelinha salta avisando-me de correio, diz que é lixo electrónico. "saldades" é o assunto. antes de deitar fora, algo me leva a abrir a mensagem.

Rocha era um dos nossos carregadores. fazia parelha com o Sr. Fernando, um velhote rijo que se recusa a arrumar as botas e aposta todas as semanas no Euromilhões. todas as semanas dizia "menina, prá semana, se não me vir, já sabe! aqui o Careca ganhou o éro-milhões e pôs-se a andar prá praia! mas eu deixo um recado com o Rocha juntamente com um cheque para os putos dele e um dinheirinho para si também". Rocha ria-se. sempre na sua onda muito serena, mostrou como se dança capoeira no meio de um monumento nacional: pousou os ferros que trazia às costas e atirou-se para o chão. fazia o que lhe competia mas ajudava para além disso, apenas por achar que devia. arrumava melhor que ninguém todo o cenário no mísero espaço de 1mx2m e mostrou-me como se descarna um fio eléctrico. contava histórias da sua ascendência índia e de como tinha partido o nariz. chamava-me "patroinha" porque nunca conseguiu decorar o meu nome. apesar de poder sair, ficava depois de o trabalho acabar. seguia os actores nas visitas guiadas para conhecer melhor as pedras onde arrastava o carrinho. e depois ficava a ver o espectáculo, todos os dias. e comentava como gostava de trabalhar ali, porque afinal descobrira que gostava de teatro. ficava fascinado com os pormenores, fazia perguntas sobre o texto e ficava à conversa com os actores, trazia a mulher para assistir e pedia se podia sentar-se no meio do público. claro que podes. "se pudesse, era isso que eu faria da minha vida, sabe? ficar carregando os cenários, ajudar montar as coisas pra fazer sentido. é incrível como se cria esse mundinho de faz-de-conta."

nos dias em que nos cruzávamos com aqueles grupinhos de gente pequenina de panamás coloridos e bibes aos quadrados, ele, com sete cadeiras às costas, fazia um esgar dorido e dizia "não posso ver esses meninos, me lembram meus filhos, bate uma saudade... dá uma vontade de chorar, sabe?"
Rocha aderiu ao mundo dos computadores, instalou o messenger para poder falar com os filhos do outro lado do mundo. e tem o disco rígido recheado de fotos de sítios onde esteve e de outros com que ainda só sonha. de gente que se cruzou com ele nos vários lugares onde já viveu. "esse computador tem a minha vida. se roubassem era pior que perder o BI". um dia trouxe o computador e a máquina fotográfica. fez questão guardar no disco rígido também esta equipa, estes novos "amigos". um diabo, um anjo, um velhote de ar desconfiado, uma menina de saias às cores e outra de calças de ganga. e ele. hoje recebi essa fotografia.

Rocha está ilegal em Portugal. não faço campanhas a favor nem contra. é apenas um facto. não conseguiu ainda tratar das papeladas. teve de sair do teatro porque não recebia o suficiente para pagar o aluguer da casa e ainda mandar algum dinheiro para os filhos. "quero ficar em Portugal. adoro esse país. mas preciso trabalhar, aqui não ganho o suficiente". com lágrimas nos olhos, disse que ia para as obras e que se precisássemos de fazer mudanças, para os amigos ele tinha o Domingo e era de graça. umas semanas depois foi apanhado pelo SEF. mas um amigo deu-lhe outro trabalho numa sapataria para os lados do Rossio e prometeu ajudá-lo com a legalização. eu espero que consiga. porque ele merece.

Comentários

Anónimo disse…
sendo eu a menina das saias às cores, vêm-me as lágrimas aos olhos com o q escreveste. o Rocha era o amigo, o mais competente, o colega, o professor, a pessoa Espantosa.
Por merecer mais que tudo, espero que consiga safar-se desta. Por ele, pelos meninos do outro lado do mundo, pelas saudades, porque sim.
PS. já tenho saudades das manhãs geladas no mosteiro a cantar e a rir contigo e com o Rocha.
Anónimo disse…
Que história tão bonita e tão real. Fez-me lembrar os portugueses deportados do Canadá. Estavam ilegais com um estatuto falso de refugiados enganados por outros portugueses. Estes acontecimentos trazem-nos uma coisa boa. Aprendermos a olhar para a forma como tratamos os milhares de brasileiros, africanos, russos, moldavos, ucranianos e outros que trabalham em portugal, que pagam impostos e que melhoram a nossa vida trazendo com eles, o aumento demográfico, novas culturas, novos conhecimentos, formas de pensar, de agir e de viver. Por vezes esquecemo-nos do orgulho que merecem.
Anónimo disse…
colherzinha: é, de facto, uma pessoa impecável. também tenho saudades. é que agora está lá um pintas... quando vamos comprar sapatos? ;)

rantas: como em tudo, há gente boa e gente má. este homem é um diamante em bruto. precisamos de gente assim, pura e trabalhadora. o resto que embarque para uma ilha bem longe e fique lá a coçar micose e a gozar com os parceiros do lado...
Anónimo disse…
que doce senhor, esse brasileiro. espero que tudo resulte para ele!
Anónimo disse…
Conseguimos achar a beleza das coisas que doem tanto. Fiquei triste, depois sorri. Sim, ainda acredito.
Anónimo disse…
Bem rapariga,
Conseguiste pôr-me aqui com a pele toda arrepiada.

Eu, que sou um emigrante perfeitamente legal, já me custa a distância da família, embora qualquer avião da TAP me ponha aí em duas horas e meia. Quanto mais o sofrimento de um homem com um oceano inteiro a dividi-lo dos filhos!
Ao menos esse tem a net para diminuir as distâncias. E eu sei bem como isso ajuda!

No entanto, este teu post fez-me lembrar a reportagem que vi ontem e um trabalho que fiz durante o meu estágio na Casa da Cultura de Beja.
A reportagem era sobre os senegaleses que se metiam em pirogas para durante um par de dias atravessar o mar e tentar chegar a Tenerife.
No meu estágio, consegui expôr o kit de 60 fotos da exposição Êxodos do Sebastião Salgado, ao mesmo tempo que um colóquio sobre migrantes e refugiados.

é incrivel o risco que essas pessoas correm para atingir o "el dorado" europeu. Nós por cá queixamo-nos, eles por lá sofrem.

Sofrem tanto, que se pagam o dinheiro que não têm a mafiosos que prometem faze-los chegar à Europa. E eles acreditam... e eles pagam... Deixam a família como caução, porque acreditam que poderão pagar o serviço e ganhar dinheiro suficiente para traze-los mais tarde.

E viajam em contentores de metal para atrevessar toda a Africa. E uma vez chegados a Gibraltar dizem-lhes para esperar... esperar o momento de atravessar nua piroga o estreito. Que basta isso para serem ricos, para serem europeus. Que basta atravessar aquele pedaço de água para terem um pedaço de felicidade! E acreditam! E tentam a travessia!

O que eles não sabem, é que do outro lado está à espera a Guardia Civil e a Cruz Vermelha, que verificam o estado de saúde, os fazem recuperar e os reenviam para trás. Porque nós europeus não os queremos, porque nós europeus os exploramos tanto quanto podemos, criando a miséria e obrigando-os a partir dos seus países.

O que eles não sabem é que o sonho de muitos deles ficará por ali, entre a miséria e a riqueza, a escassas centenas de metros da Europa, nas águas geladas do Estreito de Gibraltar. Apenas porque eles acreditaram...
Anónimo disse…
Eu também espero!O teu texto transmitiu-me o carinho que sentes pelo Sr. Rocha e o tema de emigração toca-me bem de perto.
Beijinhos

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