uma miúda só, no meio da multidão de sacos e músicas de Natal. paragens em lojas, sem olhar para as montras. já tenho o moleskine com pautas para o irmão músico... era a prenda maldita. resolvido. ainda em busca de um quadro de cortiça para pintar (que o dinheiro não dá para mais), recebo um telefonema. corro ao hospital, para dar apoio moral ao meu pai. a minha (outra) avó está no hospital. uma mulher com quem não tenho laços particularmente fortes. a quem desde sempre ouvimos queixas melodramáticas-hipocondríacas. o vizinho tinha uma doença e ela no dia a seguir também já a tinha. como na história do Pedro e o Lobo. agora é a sério. "problema grave nos intestinos, que provavelmente já chegou a outros lados". porque é que os médicos não dizem as palavras "cancro com metástases"? lá vem outro Natal daqueles, penso. cá em casa é assim, sempre assim. há sempre porcaria da grossa na altura das festividades. é sempre um Natal ensombrado, caraças. espero o meu pai, que está a resolver problemas com uma médica narcoléptica (fica para outro post, porque é realmente paranormal). observo tudo à minha volta. recebo o ar frio no rosto, encostada à parede, em frente à ambulância vazia. do outro lado das portas de vidro, gente disposta de frente para a televisão respira o mesmo ar rarefeito, suado, doente. numa sala fechada, em que todas as portas têm o sinal de sentido proibido. excepto a da casa de banho. de onde sai um homem com uma chucha, que entrega a uma mulher que tem uma bebé sorridente no colo. velhinhas, muitas. de ar cansado e olhos postos no nada. à espera. gente com a cabeça enterrada nas mãos, levantam-na de cada vez que há um movimento, na expectativa. ouço os seus suspiros sem som. estou (demasiado) habituada a hospitais. mas desta vez não fui capaz de entrar naquela sala.
sabes quando te revisitas e já não te encontras? não sabes o que fazer de ti contigo. as perdas têm sido valentes, as estocadas mais fundas. pensei que por agora a pele estivesse mais grossa, mas não. pensei que estivesse de pés assentes, mas há força nas pernas. perdi o meu pai. perdi o meu chão. espero por uma fase boa. em que esteja tudo bem, organizado. nem que venha depois outra ventania, mas um pedaço de vida em que tudo esteja no seu lugar. só por um bocadinho. mas não. as peças estão espalhadas, quando começo a arrumar umas, caem ao chão as do outro canto da vida. um empilhar de pratos num tabuleiro demasiado cheio, que não se tem oportunidade de ir despejar à cozinha. até as metáforas me saem avariadas, já. tabuleiros de cozinha é o que me sobra. isto são metáforas, certo? é um padrão, o padrão caótico da minha vida, que tento desenhar em palavras que já não tenho. quero despejar-me aqui mas não sei bem como. os medos continuam, sabias? estão piores, diria, porque...
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