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separar das aguas

largo o ar que é menos puro que o meu cigarro. num pequeno compasso, fujo para onde ninguém me vê. para um momento que conheci de cor. sei que será agora ou nunca que o reviverei. aquele em que descalça passeava nas tábuas frias, sozinha. não me descalcei nem subi os três degraus mas senti aqueles segundos perfeitos. ouço lá fora o burburinho das vozes dos outros. e lá ao fundo as gargalhadas daqueles que fui. deixo-me ficar ali, no silêncio do entretanto. olho em volta, os assentos expectantes de corpos. a parede alta, que parece não terminar. chegam-me os cheiros das madeiras atrás de mim e parece-me ver uma figura esguia de rolo na mão. a marca no rebordo do degrau por onde descia para me sentar. acaricio o veludo vermelho a medo, quase a pedir-lhe permissão por uma intimidade que agora sinto estranha. mas inevitável. como um velho amante que conhece de cor a pele e os cheiros mas que já não pode possuir. outro vulto me passa, apenas nos olhos, passeando devagar no escuro, em cima do palco. esse senta-se de pernas cruzadas, abraçando os joelhos e deita-se. mira a teia onde repousa as preces. cheira-me a cabelo quente, a laca e a baton. outro estranho ser que reconheço mas não conheço está sentado ao fundo, num sofá, à espera da mão. apenas duas luzes estão acesas para que não se caia, mas poderia subir, descer, contornar e enrolar-me no espaço sem vê-lo. mas não o faço. permaneço até sentir o ligeiro tremor. e vejo nitidamente a rapariga saltitante de chapéu branco e saias volumosas, seguida de perto pela mulher fatal de camisa de dormir demasiado curta. ao fundo, atrás de uma cortina vislumbro a senhora triste de cabelo preto e xaile. a mulher rebelde que dançava ao som do musical. a outra, de longos cabelos loiros, abre o peito às espadas e chora baixinho. dançam à minha frente em movimentos cada vez mais leves até se esfumarem no silêncio. um arrepio. o meu querido abraço quente. são as pedras. aliviam-me a culpa de já não me terem. agradecem-me os dias em que nelas me enrosquei, em que me deitei e rocei. bebem os restos da minha entrega, os despojos da minha paixão. beijam-me o rosto num fôlego morno, terno, doce que me escorre nos lábios até bem fundo dentro de mim. lambem-me o sal e o pó que usava para lhes contar histórias de encantar. cada reencontro dói mais. amo-te.

Comentários

Anónimo disse…
as tábuas e as altas paredes de pedra têm sim a tua presença gravada por todo o lado. sente-se, respira-se e vê-se. a saudade chega, e os olhos fecham-se para irem de encontro ao cantinho bom e quente da memória do passado. ali fico.
Anónimo disse…
Eu fico. Fico só, mais inocente.
Anónimo disse…
quem sente o que faz com o coração sofre.
mas não te esqueças, também houve e haverá alegrias.
e este foi mais um passo para isso.
eu acredito nisso.
tu mereces.
Anónimo disse…
lindooooooo! como sempre! um grande beijo de boa semana.
Anónimo disse…
Muito, muito bonito.

Lê o "Instinto de platea
en la sociedad del espectáculo" de Alfredo Correia Soeiro. Vais gostar.

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