Avançar para o conteúdo principal

pao por deeeeus

santa terrinha, 9 da manhã. tudo calmo. a luz entra preguiçosa por entre as portadas, o mundo parado debaixo do edredon azul, no borralho quente do corpo descansado, imerso nos sonhos sem sonhos de que a cabeça precisa, e que dure muitas horas para recuperar.

blém blém blém
tocam à sineta do portão (o meu pai gosta de coisas rústicas...) e um coro de vozes novinhas novinhas a estrear grita:
- pão por deeeeeeeus
silêncio. dentro do edredon o primeiro movimento. lento, atabalhoado, mas irritado. rezando para que este ano haja, de facto, alguém em casa, que vá à porta antes de os miúdos voltarem a to...
blém blém blém
- pão por deeeeeeeus
não, outra vez não. este feriado é maldito. é sim senhor. cabeça para debaixo da almofada, edredon até ao nariz.
trrrriiiiiim trrrrimmmm
- pão por deeeeeeeus
mudaram de estratégia. foram ao outro portão, que tem campainha normal. (sim, é rústico, o badalo, mas não se ouve na casa toda). oh não. sei perfeitamente o que vai acontecer. como ninguém aparece vão deixar o dedo na camp...
trrrrrrrrrriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmmm
raispartafilhadamãedosputosmaisoestaporquinventouestaporcariadeferiado
- pão por deeeeeeeus
o meu avô ajuda à feira e toca à campainha interna que usa para chamar a minha mãe (e restantes servos).

silêncio. desistiram. aaah. hmmm. mas, mas, mas... os meus olhos. não querem fechar! oh não! a insónia matinal não!
acender tv, pode ser que me embale.
missa ou clube das chaves.
dasse.
levanto-me e enrolo-me num casaco quente. estupor de quarto frio, o meu.
vou até à sala. daí a pouco, com a chávena de café na mão, vejo chegar os meus pais.
- tocaram uns miúdos. não me consegui levantar, desculpem.
- ah, deixa estar, já passaram por nós e já dissemos para volt...
trrrrriiiiiimmm
- pão por deeeeeeeus
já é mecânico. o meu pai sai, casaco em banda, perguntando alto
- quantos são?
vou à mesa de jantar.
ele grita para dentro.
- são sete
oh well...
conto seis saquinhos que já estão preparados. tiro outro do rolo, abro e recheio. três rebuçados às cores, dois chocolates em miniatura, uma pastilha.
o meu pai volta, o mesmo sorriso de leste a oeste que me deu no código genético. dou-lhe os saquinhos
- este ano vêm em alcateias, bolas! eheheheh

desde que vim morar para aqui é assim. a palavra espalha-se. de geração em geração. aqui há saquinhos às cores. aquelas cores que fazem mal aos dentes mas sarapintam os rostos de alegrias gulosas. e o senhor grande das barbas abre o portão a rir, com as mesmas sarapintas nos olhos que eles, e deixa fazer uma festa na cadela grande e gorda.

sem religião.

dantes, quando os tempos eram outros, fazíamos noitadas a preparar os "treats" rodeados de caixotes de chocolates e gomas. até separávamos umas moedas em montinhos.

agora o senhor das barbas coxeia um bocado, e os saquinhos são mais pequenos.
mas há sempre doces e um sorriso.

Comentários

Anónimo disse…
Para não variar passei por vários estágios emocionais ao ler este texto!

És linda, tal como os restantes habitantes do casarão cor-de-rosa!

Ah, e o coxear, só acrescenta mais uma dose de charme e misssstéeeeeerio!

Beijos GRANDES, B.
miak disse…
Sei que dormi até às 14h no feriado...
Sei que também devias de precisar...
Sei o que custa uma campainha teimosa...
Sei isso tudo...

Mas mesmo assim...pareceu-me tudo tão certo.
Jorge Moniz disse…
E o pão-por-deus antigamente era no dia da espiga, 5ª feira da ascenção...

Mensagens populares deste blogue

sabes quando te revisitas e já não te encontras? não sabes o que fazer de ti contigo. as perdas têm sido valentes, as estocadas mais fundas. pensei que por agora a pele estivesse mais grossa, mas não. pensei que estivesse de pés assentes, mas há força nas pernas. perdi o meu pai. perdi o meu chão. espero por uma fase boa. em que esteja tudo bem, organizado. nem que venha depois outra ventania, mas um pedaço de vida em que tudo esteja no seu lugar. só por um bocadinho. mas não. as peças estão espalhadas, quando começo a arrumar umas, caem ao chão as do outro canto da vida. um empilhar de pratos num tabuleiro demasiado cheio, que não se tem oportunidade de ir despejar à cozinha. até as metáforas me saem avariadas, já. tabuleiros de cozinha é o que me sobra. isto são metáforas, certo? é um padrão, o padrão caótico da minha vida, que tento desenhar em palavras que já não tenho. quero despejar-me aqui mas não sei bem como. os medos continuam, sabias? estão piores, diria, porque...

q.b. de q.i.

como é sabido, neste centro de escritórios funciona também uma das maiores agências de castings do país. há enchentes, vagas de gente daquela que nos consegue fazer sentir mais baixos e mais gordos do que o nosso próprio e sádico espelho. outras enchentes há de criancinhas imberbes que nos atropelam no corredor de folha com número na mão. as mães a gritarem hall fora "não te mexas que enrugas a roupinha" ou "deixa-me dar-te um jeitinho no cabelo ptui ptui já está"... e saem e entram e sentam-se e entreolham-se naquele ar altivo as meninas muito compridas e muito fininhas, do alto ainda mais alto dos seus tacões e com a mini-saia pendurada no osso da anca, que o meu patrão já diz "deixem passar dois anos que elas começam a vir nuas aos castings... pouco falta... têm é de vir de saltos altos... isso é que já não descolam dos pés!" bom, nesses dias aceder à casa de banho é um inferno. é que elas enfiam-se lá dentro nos seus exercícios de concentração preferid...

there goes my hero. 1 ano

Pergunto-me o que acharias acerca desta demência toda, desta distopia rocambolesca mas ainda assim não suficientemente diferente do “normal”. Deste bailado em corda bamba da auto-idolatria com os gestos incrivelmente abandonados de ego. Desta atrapalhação profundamente honesta e refinada que se aprende fazendo e se desfaz em ilusões como uma teia fininha. Deste viver no presente forçado, fincados no agora até à dor no pescoço porque agora é que não sabemos mesmo o que vem depois de amanhã.  Provavelmente discutimos aces amente sobre uma merda política qualquer que não controlamos, para a seguir nos estarmos a rir cúmplicemente de qualquer coisa pouco apropriada. Cheira a grelhados, que o vizinho tem quintal, e aí a coisa custa mais. Esse peso bom da mão inteira na cabeça que me guardava a inquietude faz falta. Distopia é não estares aqui. O resto aguenta-se com um cravo ao peito. Contigo cravado no peito.