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no palco nunca estás sozinha


[ms]

os fantasmas vivem lá, habitam em cada grão de pó. os fantasmas de todos aqueles que vivem ali, e ali só.
que nascem em palavras da alma de algum escritor, brotando tinta escura no papel imaculado. são antigas, as letras, ou nem por isso. não interessa. ali repousam, as letras, as palavras, os espíritos transparentes.
um dia são acordados por umas mãos que lhes tocam ao de leve. depois soam as gargalhadas lá fora, ouvem-se falados. ouvem-se a si mesmos a respirar, a sofrer e a sorrir, entre conversas que não conhecem. assim, meio entaramelados, os fantasmas sentam-se na borda do papel, mirando aqueles seres de mãos quentes que acariciam as suas páginas, que seguem com dedos espetados os parágrafos das suas ruas. que evocam as suas letras, a sua tinta. vêem esses seres de olhos sérios, olhando-os dali sem os verem, fixando com dúvidas e ar confuso as frases que disseram. aos poucos as expressões mudam, parecem compreender. rabiscam novas letras ao lado das suas. que revelam sentires que acham que sentem as palavras e que sentem os fantasmas. e eles olham as novas letras. e riem, e choram, e acenam ou negam. ali, sentados em volta, os seres pintam a marcador flourescente as "deixas". e fica colorido o papel, a sua casinha, cheia de cores e riscos e rabiscos e palavras novas.

um dia os papéis voltam a passear, até um sítio muito grande. e neles, sentados, sempre os fantasmas. olham o novo espaço e vêem as luzes acenderem-se, quentes, lentas, lânguidas. vêem os seres de mãos quentes a subirem ali para cima. e gritar. as vozes com as suas palavras ecoam nas paredes e giram tantas vezes. os seres às vezes fazem grandes disparates, como gemer sem nexo, mover-se de formas estranhas, vestem roupas novas com alfinetes pendurados, saltam, parece que enlouquecem.
andam descalços naquele chão e é aí, enquanto falam as palavras dos fantasmas e se enraízam na madeira que os fantasmas se sentem atraídos, magnetizados. aos poucos, devagarinho. observam à sua volta outros, que já lá estavam, viajando sentados nos grãos de pó, agora levantados pelos pés descalços dos seres das mãos quentes.
um dia o papel cai das mãos do ser, espalhando-se no chão, branco no preto. um negativo das palavras. e o fantasma observa lá de baixo. na primeira lágrima que o primeiro ser de mãos quentes solta, de pés descalços, ao dizer a tinta, o fantasma sobe.
torna-se grande grande grande. e abraça-se ao ser. abraça-se com força e chora com ele. e assim o fantasma se entranha feito água, ar, riso, roupa, na pele do ser das mãos quentes. e ele próprio sente que tem mãos, que anda descalço no chão.
todos os dias os seres voltam. todos os dias os fantasmas os aguardam. e crescem e vivem ali dentro. depois voltam aos grãos de pó para descansar e de lá nunca mais saem. [nos papéis, se olhares com atenção, verás as pegadas dos fantasmas, de quando moravam ali.]
é assim até um dia o fantasma sentir o coração do ser a acelerar de forma estranha, no escuro. nesse dia, assim que a luz acende, explode num orgasmo dentro do ser em mil partículas que penetram bem fundo nele, escorrendo até aos pés calçados ou descalços. apenas uma dessas ínfimas partículas fica dentro do ser. uma só, ficará eternamente. as restantes reúnem-se, quando as trovoadas soam, aquelas das mãos quentes de outros seres que os vêm visitar e ouvir. voltam a cada trovão ao chão e esperam pelo dia seguinte.
aprendem que podem ir ter com os seres àquela sala estranha de luzes fortes onde o fumo do cigarro se mistura com o cheiro das lacas e dos cremes e com a poeira dos cabelos e o vapor do ferro de engomar. divertem-se no reboliço, nos gritos e corridas, nas gargalhadas e "merdas", saltitando dentro do pó de arroz das meninas, para lhes beijar as faces. enrolando-se bem fundo na capa dos rapazes, para lhes pregar um susto, espetando para fora um alfinete, desapertando um botão.

quando um dia o silêncio volta ao palco, os seres sossegam e dormem. passeiam um pouco pelos grãos de pó. cantam inaudivelmente as palavras aprendidas, partilhadas, como lenga-lengas a chamar os seres, celebração às vidas dentro deles e mensagens secretas à partícula que sempre viaja com eles.

aguardam com expectativa o dia em que outros seres ou aqueles mesmos voltem, com novos amigos.
ou apenas para dançar no palco escuro. aí dançam contigo. observam-te e vêm soprar-te ao ouvido sem ouvires que gostam de ti e que têm saudades quando não estás.
é aí que sentes o arrepio...

Comentários

Anónimo disse…
contar histórias tem o seu quê de mágico.
escrito assim, a magia, ao contrário dos truques de ilusionismo, fica maior e cresce.
Anónimo disse…
Meu Deus.

Obrigada por me ensinares. Havemos de ir juntas, agora que já conheço.
Já consigo ouvir o barulho no silêncio. Do que permaneceu no tempo

Sinto-me intoxicada pelas palavras. Mas é uma intoxicação feliz...
Anónimo disse…
Querida Polegar
A tua escrita é inovadora, estes últimos posts precisam mesmo de ser digeridos, não são leves, mas a sua densidade tem muita qualidade.
Um beijo
Daniel
Anónimo disse…
depois de te ler gostava de passar pela "pele" de um fantasma...
Anónimo disse…
gosto dos fantasmas e gosto do arrepio.
para qd um novo?
para qd de novo?
juntas? juntas.
aliás, juntOs.

bj*
Anónimo disse…
Tb tenho saudades...

Para quando??

Bj.
Anónimo disse…
{ ...

muito para além e aqui.

onde cada palavra é feita, exclusivamente, para ti.

«venho simplesmente testemunhar /.as tu.as demonstrações de evidência patenteando.as na sua beleza escrita e ensaiando.as na alma (fazendo.as sobressair) e as.sim tornando.as evidentes ou clar.as.»; «venho simplesmente guarnecer.me em volta; em simples pensamentos experimentar outro começo circular, pois todos temos decorações “adornos” diferentes. escolhi /.as mais fretad.as palavr.as, aquel.as com magia especial. subi /.as escad.as lentamente e com a ânsia própria de uma descoberta. afinal. o fim era afinal o início; era o rodear pensado. rodeei-me então, mais e mais de ti em junção presente. apesar de ao longe se ouvir: “que lémure és, que nem mil romances p.as.sados, pequenos és, nem vês, (que parecem guardados em nós, e em ti cego rodeado e p.as.sado,) nem vês. m.as encontrei pequenos recantos, inteiros, dezen.as deles sem regresso nem futuro; sem inicio ou fim; sem círculos. centen.as de palavr.as, diamantes, amantes, e antes vid.as encantad.as onde nem eu nem tu existimos para sempre.»; «venho simplesmente testemunhar a ligação perfeita: “circularidade”; tu e eu; início e fim; que tem forma de círculo; muito para além e aqui.»

no tecto desenho o pânico, e arcos em form.as descontínu.as.
tentando agradar.
a fim de personalizar
acompanho com vinho da c.as.a.

© ricardo biquinha, in “um quase nada”

... }
Anónimo disse…
tenho simplesmente saudades de ti.
Anónimo disse…
Estou, de facto, com muita curiosidade de te ver em palco. Estás em palco agora? Sempre? Quando achas que isso vai ser possível? Informas-me?

Beijinhos
Anónimo disse…
espanta: muito me honra o teu comentário. porque são raros e portanto apenas aparecem quando realmente mereço. um beijo.

macaso: intoxica-te que este pó não tem efeitos secundários... bem vinda ao meu mundo :)

daniel: errrr... bem, como não sei como responder, apenas um beijo...

colher: estou a tentar, acredita. que o arrepio voltará e dançaremos com os fantasmas, não tenhas dúvidas. já estão impregnados em ti as tais partículas... e elas fazem-nos sempre voltar...

miak: ...não depende só de mim.

pipe tobacco: estou sem palavras. obrigada.

macaso: já regressei!

tubarão: aqui encontrarás sempre novidades de quando voltar às tabuinhas... se não for pedir muito que vás andando por aí... :)

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